05 junho 2025

CONTABILIDADE ESPIRITUAL - REINALDO DI LUCIA

 


CONTABILIDADE ESPIRITUAL

Reinaldo Di Lucia, engenheiro, amante da filosofia e dos debates espíritas. Fundador do Grupo de Pesquisas Científicas Ernesto Bozzano e membro do Centro Espírita Allan Kardec (CEAK) de Santos, do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc) e do Cultura Espírita Livre Pensar (CELP) de Curitiba. Delegado Especial da CEPA.

Qual o objetivo da reencarnação?

Aparentemente, esta é uma pergunta básica no âmbito da doutrina espírita. Afinal, a reencarnação, considerada um dos pilares que sustentam o edifício teórico do espiritismo, é ideia muito debatida em palestras dos mais diversos gêneros, em todos os centros espíritas.

Ocorre que, infelizmente, há um erro de interpretação na razão de ser da reencarnação. O movimento espírita encara-a como sendo uma oportunidade dada por Deus para que os espíritos " resgatem os débitos do passado ", ficando, assim, quites com a lei divina, e prontos para recomeçar sua escalada evolutiva.

Os livros espíritas, especialmente os de autores desencarnados, são pródigos em estórias que exemplificam esta visão: desde cruéis senhores de engenho que, tendo maltratado seus escravos, renascem em absoluta pobreza, sofrendo o escárnio da sociedade até assassinos que devem morrer cruelmente, não faltam casos a exaltar a infalibilidade do velho ditado: aqui se faz, aqui se paga.

Àqueles que buscam um motivo teórico para estes casos é fornecida a explicação da lei de causa e efeito (ou, como é muito comum dizer-se, a lei do karma): uma vez violada a lei de Deus, o efeito é imediato, voltando ao infrator sobre a forma de sofrimento inevitável.

Deve-se ter em mente, contudo, que nada há, na base da filosofia espírita, que justifique a ideia de reencarnação como punição ou mesmo como resgate de faltas do passado. Kardec é claro ao postulá-la como prova, isto é, como oportunidade de o espírito refazer, em outra ocasião, a tarefa que não pode ou não soube realizar a seu tempo.

Mesmo se não se levar em consideração o argumento de autoridade, isto é, deixando de lado o que diz Kardec, a própria razão deveria levar a esta conclusão. A reencarnação como punição nada mais é que uma reedição da pena de Talião, o famoso olho por olho, dente por dente. No fundo, é apenas uma vingança, cujas reações, apesar de diferentes, são igualmente funestas. Na melhor das hipóteses, o espírito reencarnante resigna-se a um destino doloroso, do qual ele não pode fugir, não atuando proativamente em benefício de uma efetiva regeneração íntima. Na pior das hipóteses, a reação é de revolta, atrasando ainda mais o processo evolutivo.

O sofrimento não pode, de maneira alguma, estar previsto na lei natural, como punição inexorável àqueles que a violam. Sofrimento é uma reação pessoal a fatos da vida, estes sim relacionados diretamente às ações de cada espírito, encarnado ou não. Aqueles que conseguem ter uma atitude positiva perante a vida, pouco sofrem; já os que veem no próprio fato de viver um fardo insuportável (oh! vida, oh! azar...) sofrerão sempre, por menores que sejam as vicissitudes por que passam.

Reencarnação é prova, tal como provas há em qualquer escola aqui na Terra. É uma oportunidade fantástica de aprendizado, possibilitando a cada espírito demonstrar, para si mesmo, que pode continuar sua escala evolutiva em outros níveis.

O espiritismo é, por si só, uma filosofia altamente consoladora. Não deve incorporar o sofrimento existente em outras doutrinas, muletas que, a pretexto de ajudar, obstruem o caminho evolutivo do ser. A evolução deve ser feliz e prazerosa, mesmo quando difícil. E isto, quem faz somos nós mesmos

 

20 maio 2025

A LENTA MARCHA DO PROGRESSO Marcio Sales Saraiva

 A LENTA MARCHA DO PROGRESSO   

  Marcio Sales Saraiva - Escrevinhador, sociólogo e coordenador do Centro Espírita Herculano Pires (RJ). É doutor em Psicossociologia (Eicos/UFRJ).

Os seres humanos abandonaram seu “estado de natureza”, com suas organizações sociais primevas, para construir sociedades enormes e complexas, chamadas de “civilizações”.

Para o espiritismo (KARDEC, 2006, questão 776), não podemos confundir esse “estado de natureza” com a chamada lei natural, pois esta é, na verdade, lei de Deus, regendo o funcionamento cósmico. Em “O livro dos espíritos” encontramos dez aspectos dessa lei natural de regulação da vida, e um deles é a chamada lei de progresso.

O progresso humano faz parte dessa lei natural ou lei de Deus. Isso quer dizer que o ser humano não regride — nem espiritualmente, nem socialmente — ao seu estado de natureza ou “primitivo”. Em outras palavras, o progresso evolutivo espiralar é uma força endógena e espontânea (KARDEC, 2006, questões 778–779) que conduz a humanidade planetária. E, embora alguns seres humanos reacionários tentem impedir esse progresso, causando-lhe embaraços e retenções, ele ainda assim se afirmará gradualmente (KARDEC, 2006, questão 781), porque essa é a lei divina, essa é a vontade da vida que pulsa no mundo. De fato, não haverá paz global “sem trazer de volta do exílio ideias como a do bem-público, da boa sociedade, da igualdade, da justiça e assim por diante — ideias que não fazem sentido senão cuidadas e cultivadas na companhia de outros” (BAUMAN, 2000, p. 16). O progresso, hoje, envolve tais questões democráticas.

A civilização que temos — seja no capitalismo ou nos diversos modelos do antigo socialismo real — representa ainda um “progresso incompleto” (KARDEC, 2006, questão 790), pois falta maturidade aos seres humanos. Nós ainda não estamos “preparados” nem “dispostos” (KARDEC, 2006, questão 792) a viver numa sociedade igualitária, caridosa, ambientalmente sustentável e de bem-comum. Por outro lado, muitos acusam, ansiosamente, a lentidão desse progresso “natural” (os espíritos chamam-no de “regular e lento” – ver questão 783), mas eles sinalizam que esse processo poderá sofrer intervenções da lei de Deus para que ocorra uma “aceleração” revolucionária. Em outras palavras, certos abalos físicos ou morais poderão fazer a humanidade avançar mais celeremente rumo ao progresso social, econômico, cultural, político e espiritual. Por vezes, é preciso que o mal “chegue ao excesso” (KARDEC, 2006, questão 784) para que a sociedade perceba, com clareza, a necessidade “do bem e das reformas”, que poderão ser pacíficas ou não (vide lei de destruição).

De acordo com a concepção kardequiana, nossa civilização chegará ao ápice, à plenitude, quando estiver desenvolvida moralmente, vivendo cotidianamente a partir de uma ética das virtudes. Neste momento histórico em que ainda estamos mergulhados, aqueles que se julgam “civilizados” são, na verdade, apenas pessoas “esclarecidas” cognitivamente, mas carentes do componente ético-moral, embotadas no campo das virtudes e distantes do senso de irmandade e de comunhão necessários para um progresso pleno e autêntico da sociedade e de suas instituições (KARDEC, 2006, questão 793).

É importante frisar que Kardec, bom descendente da modernidade racionalista e do Iluminismo, compreende que o chamado progresso ético-moral será consequência do progresso intelectual/cognitivo. A razão — e não a irracionalidade das paixões destrambelhadas! — é o abre-alas para o avanço no campo das virtudes. Essa posição de Kardec não o torna ingênuo, pois ele tem clareza de que nem sempre o progresso intelectual e tecnocientífico traz o progresso ético-moral (KARDEC, 2006, questão 785). O século XX foi testemunha disso, e o XXI está nos mostrando, mais uma vez.

Os dois fenômenos (ou os dois progressos, cognitivo e ético) estão relacionados, é claro!, mas não de forma automática e mecânica. Podemos ter grande avanço educacional, científico e tecnológico, ainda ausente de uma sólida base ético-moral, pois a inteligência é uma força amoral, podendo servir ao bem ou à destruição.

Somente o tempo traz equilíbrio entre razão e ética, cognição e afetos, desenvolvimento intelectual-tecnocientífico e desenvolvimento ético-moral (KARDEC, 2006, questão 785). A ampliação da prática das virtudes é processual, assim como é processual a destruição de todas as manifestações de orgulho e egoísmo — que tomam forma em instituições socioeconômicas e políticas injustas — que impedem o surgimento de uma nova sociedade baseada no amor-caridade, no bem-viver e nos interesses da comunidade.

Contrariando o senso comum do conservadorismo que deseja eternizar leis e normas sociais, aprendemos com o espiritismo que as leis humanas — e seus aparatos jurídico-políticos — são variáveis e progressivas (KARDEC, 2006, questão 795), mudando ao longo do tempo. Somente a lei natural e divina é imutável, estável e perene, pois as demais leis sofrem processos contínuos de aperfeiçoamento — e assim deve ser. Esse aperfeiçoamento jurídico-político acontece, na visão kardequiana, pela “força das coisas” ou pela “influência das pessoas de bem” (KARDEC, 2006, questão 797), isto é, por razões endógenas e por ativismo social.

Significa dizer que a humanidade vai progredindo juridicamente e politicamente, aos trancos e barrancos, mas vai. O espiritismo é, nesse sentido, otimista e fonte de esperança. Exemplos não nos faltam: o direito trabalhista e previdenciário, a ampliação do sufrágio, a redução das penas de morte, a afirmação dos direitos humanos, o reconhecimento dos direitos LGBTQIA+, a ampliação da proteção a refugiados, o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas em Estados plurinacionais, as leis antirracistas etc.

Todos esses avanços civilizatórios dependem também de fortes investimentos públicos em educação. É na formação dos seres humanos que reside a fonte fundamental do processo de reformas (libertação e emancipação) que nos impulsiona ao verdadeiro progresso societário e espiritual (KARDEC, 2006, questão 796).

Para o espiritismo, a razão joga papel central, pois, sem progresso intelectual — educacional, científico, tecnológico e cultural —, o ser humano não saberia fazer escolhas, discernir o bem do mal e, portanto, não poderia ser responsabilizado por seus atos devido à sua ignorância. Assim, o espiritismo deve ser um aliado visceral das lutas pela educação, a exemplo de Darcy Ribeiro e Paulo Freire em nosso país.

Por que a educação é fundamental para o progresso?

A educação é fundamental porque o progresso da humanidade tem por base o progresso de seus indivíduos (KARDEC, 2006, questão 789). Observe bem: não se trata de dizer que o progresso, lei natural da vida, dependa exclusivamente dos indivíduos — pois, para Allan Kardec, o progresso segue seu curso estrutural, ainda que muitos indivíduos fiquem para trás. Por outro lado, ele ganhará maior força e velocidade quando, ao longo de várias encarnações, os indivíduos se tornarem pessoas melhores, mais caridosas e compassivas, mais preocupadas com o bem-comum e o bem-viver.

Essa visão kardequiana é coerente com a tese do sociólogo Norbert Elias sobre a sociedade dos indivíduos: para ele, não há uma oposição entre indivíduo e sociedade, mas uma interdependência contínua e dinâmica. Os processos de civilização ocorrem justamente na medida em que os indivíduos se transformam em suas maneiras de sentir, pensar e agir — e essa transformação repercute diretamente nas estruturas sociais. Por isso, quanto mais avançados são os indivíduos (do ponto de vista das virtudes), mais justa e fraterna será a sociedade que formam.

Quando esses indivíduos se tornarem maioria na sociedade, ela sofrerá profundas mudanças socioeconômicas, políticas e culturais, acelerando seu ritmo de progresso. Kardequianamente falando, a mudança social está profundamente conectada à transformação individual — pois, como dizem hindus e budistas, o mundo é uma teia.

E qual é a missão do espiritismo nesse contexto?

O espiritismo tem por missão contribuir com o progresso da civilização humana e do bem-viver, contrapondo-se à barbárie e à degradação ambiental, ética e psíquica. Nesse sentido, “nada é mais importante do que recuperar a paixão das ideias” (BADIOU, 2012, p. 59), tal como a da lei de progresso em Kardec.

É destruindo o materialismo grosseiro — e suas consequências (egoísmo, consumismo, avareza, culto ao dinheiro, negação da vida espiritual e do ócio criativo) — e ampliando os laços de irmandade e solidariedade (KARDEC, 2006, questão 799) que o espiritismo poderá ser mais uma alavanca progressista no mundo, ajudando a anular os “sintomas de uma corrosiva desesperança existencial” (BAUMAN, 2000, p. 25) que tende a implodir os laços sociais.

Não cabe aqui ansiedade, precipitação ou tentativa voluntarista de acelerar o tempo histórico. Sabemos que “o mundo contemporâneo é um recipiente cheio até a borda de medo e frustração” (BAUMAN, 2000, p. 62) e que nossa sociedade líquida está permeada por solidão, impotência, conformismo e incerteza (BAUMAN, 2000, pp. 11–13). Por outro lado, se quisermos resgatar a força do pensamento kardequiano, cabe a nós — espíritas — trabalhar, com esperança, resiliência e boa-vontade, pela hegemonia das forças progressistas, conscientes de que essa transformação “só poderá operar-se com o tempo, gradualmente” (KARDEC, 2006, questão 800). A natureza não dá saltos e “cada coisa tem o seu tempo” (KARDEC, 2006, questão 801) para frutificar.

Enquanto isso, a luta segue, pois as forças irracionais, conservadoras e reacionárias da globalização hegemônica — defensoras da primazia do mercado, da liberalização do comércio, da privatização, da desregulamentação financeira, da precarização do trabalho e da destruição das redes de proteção social e ambiental — buscam colocar entraves ao processo de emancipação humana. Sabemos que “o inimigo mais temível da política de emancipação” é a “interioridade do niilismo e a crueldade sem limites que pode acompanhar seu vazio” (BADIOU, 2012, p. 22).

Por isso, precisamos esperançar, como disse Paulo Freire, e nos unir ao processo de globalização contra-hegemônica, constituído “a partir de baixo” (SANTOS, 2013, p. 30), articulando questões pessoais, locais e globais contra a opressão, o colonialismo, a desigualdade (social, racial e sexual), a destruição dos empobrecidos, a catástrofe ecológica, a expulsão de camponeses e indígenas de seus territórios ancestrais, o endividamento de famílias e pequenos empresários, e a criminalização do protesto social.

O espiritismo poderá contribuir muito, nesse sentido progressista, se retomar suas bases kardequianas e fazer uma hermenêutica para o século XXI, afastando-se de alianças com teologias políticas conservadoras. É na articulação entre a salvífica caridade, o cuidado dos outros e a “luta política contra as causas do sofrimento” (SANTOS, 2013, p. 121) que o espiritismo poderá ser um espaço relevante para o progresso humano.

Bibliografia
BADIOU, A. (2012). A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo.
BAUMAN, Z. (2000). Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar.
KARDEC, A. (2006). O livro dos espíritos (Tradução de Evandro Noleto Bezerra). Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira.
SANTOS, B. de S. (2013). Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. São Paulo: Cortez.

 

14 maio 2025

VI ENCONTRO: SUCESSO!

 Inicialmente programado para ocorrer nos dias 14 a 17 de novembro de 2024, o VI Encontro Nacional da CEPABrasil, em decorrência da enchente que assolou o Estado do Rio Grande do Sul, em maio/24, provocando o fechamento do aeroporto da Capital, somente pode ser realizado nos dias de 01 a 04 de maio, no Centro Cultural Espírita de Porto Alegre (CCEPA), instituição filiada à CEPA com a qual a CEPABrasil firmou parceria tendo como coordenador da Comissão Organizadora Salomão Jacob Benchaya, integrante das duas instituições.

Uma das sugestões oferecidas às Diretorias da CEPABrasil e do CCEPA foi de que, tanto a Federação Espírita Brasileira (FEB) como a Federação Espírita do Rio Grande do Sul (FERGS) fossem convidadas a se fazerem representar no evento, sendo que apenas esta última respondeu e se fez presente no Encontro através de seus vice-presidentes Vinícius Lousada e Iraci de Oliveira.

Na sessão de abertura, ocorrida na quinta-feira à noite, dia 01 de maio, estavam presentes, além do representante da FERGS, dirigentes da CEPA, da CEPABrasil e do CCEPA, respectivamente Nelly Urruzola, Ricardo Morais Nunes e Beto Souza. A conferência de abertura esteve a cargo de Milton Medran Moreira. Na sexta-feira e no sábado, dias 2 e 3 de maio, das 9 às 19h, houve apresentação de trabalhos, painel de debates, oficina, momentos de arte, sessão de autógrafos, lançamento de livros e a inauguração do Memorial CCEPA incluindo exposição de documentos originais de Allan Kardec, organizados pelo engenheiro Adair Ribeiro Jr., do Instituto de Educação Espírita (IEE) e do Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa do Espiritismo “Eduardo Carvalho Monteiro” (CCDPE-ECM), de São Paulo.

A Oficina teve seu planejamento a cargo de Alcione Moreno que, por motivo de saúde na família, não pode comparecer, sendo coordenada por Sandra  Regis com o auxílio, na mediação dos grupos de discussão, de Luiz Fernando Mokwa, Jacira Jacinto da Silva, Sofia Cruz Nunes, Márcia Rahabani Elias e Luciana Cruz Nunes. O tema discutido foi “Possibilidades da ação espírita transformadora”, abordado sob diferentes aspectos por cada um dos subgrupos formados.

Além da Oficina, dos conferencistas e painelistas, foram apresentados quinze (15) trabalhos por seus autores Adair Ribeiro Jr., Ademar Arthur Chioro dos Reis, Alexandre Cardia Machado, Ana Cláudia Laurindo de Oliveira, Jacira Jacinto da Silva, Mauro de Mesquita Spinola, Jerri Roberto Almeida, Beto Souza, Klycia Fontenele Oliveira, Leandro Carvalho Dias, Luiz Signates Freitas, Mariana Canellas Benchaya, Mônica Fonseca Mendes, Sérgio Maurício S. Pinto, Ricardo Andrade Terini e Ricardo Morais Nunes. A moderação foi exercida por Valéria Mokwa, Cláudia Regis, Dirce Leite, Delphine Gamarra, Adriana Kessler e Delma Crotti. Todos os trabalhos estão publicados em E-book, organizado por Magda Zago, já disponibilizado aos participantes e nas redes sociais, inclusive de autores que estavam inscritos – Rafael Ludolf e Wilson Garcia - mas não puderam comparecer.

Todas as apresentações – não transmitidas online - foram gravadas em vídeos pela empresa de Lucas Overgoor, com excelente qualidade profissional e estão disponíveis no canal YouTube da CEPABrasil, www.youtube.com/cepabrasil e do CCEPA, https://www.youtube.com/@ccepars.

No final da tarde de sexta-feira, realizou-se uma Sessão de Autógrafos da qual participaram os escritores Adair Ribeiro Jr., Alexandre Cardia Machado, Ana Cláudia Laurindo, Jerri Roberto Almeida, Luiz Signates, Moacir Araújo Lima e Ricardo Herbert Jones, este último lançando o livro “Viver e Conviver” em homenagem ao seu pai Maurice Herbert Jones, presidente do CCEPA por várias gestões, ex-presidente da Federação Espírita do Rio Grande do Sul e ex-assessor institucional da CEPA.

No sábado à tarde, houve um momento de intercâmbio mediúnico em que foram recebidas quatro mensagens de apoio e estímulo.

O encerramento ocorreu no domingo, dia 4 de maio de 2025, pela manhã, com a conferência do Prof. Moacir Araújo Lima, seguindo-se uma vivência de confraternização e arte, coordenada por Sandra Regis, coroando o pleno sucesso o evento e deixando nos participantes a sensação de plenitude e muita emoção pelos momentos de convívio, aprendizado, troca de experiências e profícuos debates sobre o tema proposto.

05 maio 2025

Mediunidade e Autoconhecimento – Menos ego e mais serviço - Dora Incontri

Mediunidade e Autoconhecimento – Menos ego e mais serviço

Dora Incontri:- Jornalista, escritora, doutora e pós-doutorada em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e da Universidade Livre Pampédia. Sócia da Editora Comenius.

Um dos primeiros posts que lançamos nesse blog da ABPE, escrito por Cláudia Mota, foi sobre nossa experiência no grupo de Mediunidade Pedagógica, em ação há vários anos. A reação favorável e os comentários do público demonstram o quanto estamos carentes de boas, consistentes e aprofundadas discussões sobre a prática mediúnica no movimento espírita. E mais, como rareiam reuniões e médiuns com trabalhos mais criteriosos, controlados e atitudes críticas e racionais em relação a essa prática.

Na atual configuração do movimento no Brasil, temos duas situações recorrentes: um espiritismo quase sem espíritos, com centros, grupos e pessoas inseguros para realizar um bom trabalho de desobsessão ou de psicografia, por exemplo; e um espiritismo que gira em torno de médiuns-gurus, que estão acima de qualquer análise crítica, que são incensados por fãs e que se tornam líderes incontestáveis em seu meio, em setores do movimento ou mesmo no movimento quase inteiro!

Três coisas muito importantes que Kardec propôs e praticou e andam esquecidas: 1) a mediunidade é algo natural, que pode ser praticada em grupos pequenos, com estudo, seriedade e princípios éticos; 2) os médiuns, por melhores que sejam, estão sujeitos a falhas e por isso devem submeter constantemente o que captam do além à crítica alheia e ao cruzamento com percepções de outros médiuns; 3) os médiuns não devem procurar (e nem mesmo aceitar) projeção, liderança e popularidade por serem médiuns (Kardec nem nomeava os médiuns em seus livros). Que busquem projeção (se assim desejarem) ou ganhem liderança, por suas próprias capacidades e não por serem intermediários dos Espíritos.

Traduzindo esses três itens em outras palavras: mediunidade é algo para ser desenvolvido tranquilamente, sem muitas complicações, algo a ser democratizado e não sacralizado; os médiuns precisam trabalhar seus impulsos narcísicos e praticarem mediunidade com modéstia.

Isso não significa que não se devam publicar coisas mediúnicas, fazer sessões públicas ou divulgar obras feitas pelos Espíritos. Mas significa que tudo isso deve passar pela análise crítica, tudo deve ser feito com desinteresse de projeção pessoal.

Ora, aí que entra uma questão muito importante: para se exercer uma mediunidade honesta e consciente, sem muita mistura de vaidade pessoal, é preciso que o indivíduo tenha o compromisso do autoconhecimento. Esse mesmo que Sócrates já aconselhava tantos séculos atrás, que se repete como uma recomendação no Livro dos Espíritos e hoje é muito facilitado pela possibilidade de fazermos terapias, nas mais diversas abordagens existentes.

Conhecendo-nos melhor (o que aliás é tarefa que não acaba numa existência), podemos em primeiro lugar saber das nossas motivações internas mais profundas, vencer a imaturidade psíquica de querermos ser adorados e mimados a qualquer preço, entender melhor como funciona nosso psiquismo, precavendo-nos contras as armadilhas do egocentrismo, do desejo de poder e outras tantas coisinhas que nos atrapalham existencialmente. Dentro de uma abordagem psicológica, passamos a enxergar tudo isso não mais como vícios, contra os quais temos de promover uma reforma íntima, com culpa e autoflagelação (o que resulta na maior parte das vezes em mera hipocrisia), mas começamos a compreender tudo isso como imaturidade espiritual. Deixar de lado exibicionismos, personalismos, melindres e vaidades é simplesmente ter atingido um grau de maturidade em que não se acha mais graça nessas pequenezas. A pessoa mais madura acha sim graça em fazer o bem sem ostentação, em buscar contribuições que a façam crescer e não as ilusões do incenso que a façam estacionar…

É claro que tudo isso é o ideal a ser perseguido. Sabemos que estamos todos em aprendizagem, em processo de maturação espiritual. Todos nós vamos misturar imperfeições nossas em qualquer ação, por isso que Kardec dizia que o melhor médium é o que menos erra. Mas não custa tentar um pouco de bom senso e seguir algumas recomendações dele. E seguir também o seu próprio exemplo.

Em todo o século XIX, com grandes gênios de egos inchados – como Compte, Marx, Freud – Kardec é notável por ter se escondido atrás da própria obra. Ele não encenava humildade, falando de si mesmo de forma depreciativa, ele simplesmente não falava de si. Buscava elaborar um conhecimento racional, equilibrado e reto. E foi tão modesto que seus adeptos chegaram a achar até hoje que ele foi mero codificador (título aliás que não aparece em nenhuma obra sua), um simples um secretário de ideias reveladas pelos Espíritos. Mas na verdade, Kardec foi o fundador do Espiritismo, que é justamente um método de abordagem dos fenômenos mediúnicos. Como se dá esse processo entre os dois mundos e como podemos analisar e aproveitar para nossa edificação moral, o que vem de conteúdo nesse diálogo entre encarnados e desencarnados? Aí reside a essência do Espiritismo. E exatamente esse seu método de naturalização da mediunidade, com uma abordagem crítica e racional, que não entendemos e não praticamos no movimento espírita.

É preciso pois, para que possamos restabelecer comunicações seguras, confiáveis e democratizadas com o mundo espiritual, que diminuamos nosso ego, recuperemos o espírito crítico, estudemos Kardec e busquemos a ética de servir desinteressadamente.

20 abril 2025

ESPIRITISMO: opressor ou libertador? Bruno Lins Quintanilha

 

ESPIRITISMO: opressor ou libertador?

                Bruno Lins Quintanilha, 35 anos, professor de Geografia no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro.         

                          Atua na Casa Espírita Eurípedes Barsanulfo, autor do livro “O que é o Espiritismo?                                         Uma tentativa de resposta para o século XXI” e de diversos artigos publicados regularmente em periódicos em periódicos espíritas. No link a seguir, é possível encontrar toda a produção do autor de forma gratuita: https://linktr.ee/brunoquintanilha

             O Espiritismo conforme construído por Allan Kardec é um grande instrumento de   esclarecimento, consolo e esperança. Entretanto, cabe apontar que não é uma obra pronta e muito menos perfeita[1]. Assim aliás enxergava o seu próprio construtor:

O Livro dos Espíritos não é um tratado completo do Espiritismo; não faz senão apresentar as bases e os pontos fundamentais, que se devem desenvolver sucessivamente pelo estudo e pela observação.[2]

Em outra obra, e em outro ano, o mesmo princípio é reafirmado:

Pensam muitas pessoas, ademais, que O livro dos espíritos esgotou a série das questões de moral e de filosofia. É um erro.[3]

Prossegue em seu último livro:

O Espiritismo, pois, estabelece como princípio absoluto somente o que se acha evidentemente demonstrado, ou o que ressalta logicamente da observação. Entendendo-se com todos os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que o Espiritismo se suicidaria. Deixando de ser o que é, mentiria à sua origem e ao seu fim providencial. Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará.[4]

Se do ponto de vista intelectual, o Espiritismo kardequiano foi abertura, curiosidade, refazer e pesquisa constantes, do ponto de vista moral ele é a busca incessante pelo bem-estar humano, seja a nível individual ou coletivo:

Coloco em primeira linha consolar os que sofrem, levantar a coragem dos abatidos, arrancar um homem de suas paixões, do desespero, do suicídio, detê-lo talvez no abismo do crime.[5]

Por sua poderosa revelação, o Espiritismo ve, pois, apressar a reforma social (6)

[1] Allan Kardec, em Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Kardec, Discursos Pronunciados nas Reuniões Gerais dos Espíritas de Lyon e Bordeaux, III parte.


          Seu fundador insistia teimosamente na importância da caridade, ou seja, do amor em movimento. Amor que pode assumir as mais variadas formas e ações possíveis, mas todas elas sempre alicerçadas no desejo do bem-estar do outro, no respeito, no acolhimento, na solidariedade:

Sem a caridade, não há instituição humana estável; e não pode haver caridade nem fraternidade possíveis, na verdadeira acepção da palavra, sem a crença. Aplicai-vos, pois a desenvolver esses sentimentos que, engrandecendo-se, destruirão o egoísmo que vos mata. Quando a caridade tiver penetrado as massas, quando se tiver transformado na fé, na religião da maioria, então vossas instituições se tornarão melhores pela força mesma das coisas; os abusos, oriundos do personalismo, desaparecerão. Ensinai, pois, a caridade e, sobretudo, pregai pelo exemplo: é a âncora de salvação da sociedade. Só ela pode realizar o reino do bem na Terra, que é o reino de Deus; sem ela, o que quer que façais, só criareis utopias, das quais só vos resultarão decepções.[7]

Resumidamente, o que busco deixar explícito é o cerne intelectual e moral do Espiritismo na proposta Kardequiana.

É óbvio que enquanto um sistema de ideias e valores construído por um homem branco, de classe média, na Europa do século XIX, o Espiritismo kardequiano tem problemas e limitações. A sociedade daquele tempo-espaço era infinitamente mais limitada do que o é a nossa atualmente. Incontáveis avanços intelectuais, técnicos, culturais e jurídicos ocorreram entre as décadas de 1850/1860 e o século XXI. Nenhuma ideia jamais deve ser descontextualizada de onde e quando surgiu. Tudo precisa ser entendido dentro de um contexto e, posteriormente, analisado e criticado.

Além do mais, dessacralizar e humanizar indivíduos e obras é fundamental, pois encarar toda obra como produto de um ser humano que tem limites e lacunas – mas também talentos e potenciais – nos permite aproveitar o que há de bom e filtrar o que não seja razoável. É preciso separar a casca, que tem muito do contexto sociocultural de um determinado tempo-espaço do fruto, que é ainda válido e extremamente rico de possibilidades e utilidade.

          Em outra ponta, não podemos esquecer que conforme as ideias são propagadas por diferentes lugares e pessoas ao longo do tempo, elas irão, inevitavelmente, sofrer modificações, adaptações, reapropriações. Uma ideia gestada na França de 1850, quando chegar ao Brasil de 1880 irá passar por um filtro sociocultural que a transformará. E de 1880 até os anos 2000, mais camadas irão se sobrepor. E não há nada de estranho nisso do ponto de vista sociológico. Isso é, na realidade, esperado, e ocorre com todas as religiões, doutrinas ou filosofias.

          Do ponto de vista da Antropologia e da Sociologia, podemos afirmar que há cristianismos, islamismos, judaísmos, espiritismos, ou seja, uma mesma religião ou doutrina vai desenvolver inúmeras variações internas conforme se difunde, muita embora vá manter alguns elementos que dão algum tipo de unidade dentro dessa diversidade que naturalmente se forma.

          Apesar dessa natural pluralidade, é importante ressaltar a importância da coerência entre religião/doutrina, suas transformações e apropriação por parte dos indivíduos. Darei um exemplo dentro do cristianismo.

Jesus, no Novo Testamento, é um indivíduo que ensina e vivencia uma profunda mensagem de amor, solidariedade, respeito. Acolhia os excluídos e marginalizados, denunciava os religiosos hipócritas e criticava as tradições que oprimiam. Após a morte de Jesus, seus discípulos iniciaram um movimento de organização, sistematização e difusão de seus ensinos. O cristianismo enquanto corrente religiosa nasce a partir disso. Entretanto, ao longo dos séculos, indivíduos e grupos usaram essa mensagem que é de amor, simplicidade, espontaneidade, para criar instituições que oprimiram, violentaram, disputaram poder político e mesmo assassinaram. De um judeu pobre que fugia da posse de qualquer privilégio, que andou entre pescadores, prostitutas e doentes, criaram posições de mando, templos cheios de luxo e inumeráveis regras.

Pastor Henrique Vieira é claro a respeito dessa questão no movimento cristão:

É impressionante como o cristianismo, uma espiritualidade de origem periférica e popular, pautada na radicalidade do amor, foi se tornando justificativa para sistemas opressores e práticas de ódio. Jesus andou com os pobres e oprimidos, acolheu as pessoas amaldiçoadas e marginais, impediu processos de execução, recusou mecanismos de vingança, exaltou o perdão como forma de mediação de conflitos, reconheceu a dignidade até de seus inimigos. Jesus foi preso, torturado e assassinado. Foi executado pelo Império Romano sob o aplauso e escárnio de muitas pessoas. Enfim, foi um preso político, vítima da violência e do ódio. Como uma mensagem com essa origem pode, em tantos momentos da história, justificar atos de violência e genocídio? A lente fundamentalista se apega à letra enquanto esfria corações diante da vida concreta.

Jesus foi vítima desse modelo que colocava a Tradição (isto é, o conjunto de leis bíblicas da época) como referência absoluta, inquestionável e impenetrável.”[8]

          Por sua vez, Chico Xavier e o Espírito Neio Lúcio, por meio da mediunidade, também dão outra possibilidade de perspectiva para a questão:

- Sara, qual é o serviço fundamental de tua casa?

- É a criação de cabras – redarguiu a interpelada, curiosa.

- Como procedes para conservar o leite inalterado e puro no benefício doméstico?

- Senhor, antes de qualquer providência, é imprescindível lavar, cautelosamente, o vaso em que ele será depositado. Se qualquer detrito dicar na ânfora, em breve todo o leite se toca de franco azedume e já não servirá para os serviços mais delicados.

Jesus sorriu e explanou:

- Assim é a revelação celeste no coração humano. Se não purificamos o vaso da alma, o conhecimento, não obstante superior, confunde-se com as sujidades de nosso íntimo, como que se degenerando, reduzindo a proporção dos bens que poderíamos recolher.[9]

O trecho acima obviamente está permeado por uma dimensão literária e até mesmo teológica, mas a reflexão que propõe é valiosa: o quanto as religiões e doutrinas sofrem de modificação quando nos atravessam? O quanto nossos interesses pessoais, lacunas e limitações influenciam nesse processo?

O fato é que a mensagem cristã foi intensamente mutilada e mesmo completamente distorcida por muitos ao longo do tempo. Uma coisa são interpretações diferentes acerca de passagens, ensinos, recomendações, rituais – o que é natural em vista da diversidade humana. Outra é transformar água em lama, amor em ódio, paz em violência, justiça em exploração.

Pois bem, o Espiritismo, como todas as religiões e doutrinas, não escapou às mutilações e distorções. E reforço que não quero aqui defender uma ideia de pureza original perfeita. Não gosto dessa ideia. O que advogo é sobre a necessidade de manutenção de coerência entre os pontos chave de uma religião ou doutrina ao longo do tempo e de sua difusão por pessoas e espaços.

Voltemos a Kardec. Em O Livro dos Médiuns ou Guia dos médiuns e evocadores, vemos um autor buscando desmistificar a mediunidade, explicando-a da forma mais simples e direta possível, com o objetivo de auxiliar aqueles que têm a faculdade mediúnica a usá-la de forma proveitosa para o auxílio aos outros ou para a pesquisa espírita. Kardec naturaliza e humaniza a mediunidade, mas atualmente, em muitas instituições espíritas, ela é encarada como algo excessivamente engessado, distante e limitado. O acesso a mediunidade e à prática mediúnica é, em muitas situações, vetado ou muito dificultado. É como um Espiritismo sem Espíritos.

Em O Livro dos Espíritos, encontramos um Kardec que se permite filosofar, questionar e dialogar com os Espíritos a respeito dos mais diversos temas, sem tabus ou medos. Na obra, são debatidas a escravidão, a pena de morte, os direitos da mulher, o enriquecimento com base na exploração, a fome e a má distribuição dos alimentos, desigualdades sociais, liberdade de pensamento e religião, etc. Isso tudo em meados do século XIX, em meio a França sob um governo de caráter autoritário. Mas no Brasil do século XXI, discutir racismo, questões de gênero, desigualdades sociais ou outros assuntos contemporâneos é visto em muitas instituições como erro grave, passível de marginalização ou mesmo expulsão.

Em Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Kardec e em O Livro dos Médiuns, observa-se uma perspectiva de grupo ou instituição espírita como um ambiente de acolhimento, fraternidade, respeito, vínculos, amor. Mas há muitos centros espíritas em que o indivíduo não será acolhido, respeitado ou tratado com solidariedade. Se um negro, gay, com o cabelo pintado de loiro e piercing for o palestrante da noite em um centro espírita, qual seria a reação do auditório? Quantos indivíduos LGBT+ não encontram espaço e nem respeito em instituições espíritas? Se um médium resolve fazer tatuagens que preencham ambos os braços, como será encarado por seu grupo de reunião?

Para além disso, percebo também espíritas com alto grau de sofrimento psíquico vivenciado ao longo da vida pela forma como os ensinaram e apresentaram o Espiritismo. Pessoas com muito medo, culpa, insegurança, desencorajadas a questionar, estimuladas a sempre obedecer. Indivíduos, por vezes, verdadeiramente traumatizados. Não é difícil encontrar relatos de espíritas sobre experiências dolorosas vivenciadas no ambiente espírita.

O fato é que podemos falar de um tipo de fundamentalismo espírita que está presente no Brasil. Uma forma de se apropriar, relacionar e difundir o Espiritismo que pode oprimir, violentar, silenciar. Uma maneira de olhar arrogante, que enxerga o Espiritismo como algo superior, hierarquicamente acima de outras religiões ou doutrinas, como um saber que está além da ciência e da filosofia. Uma perspectiva autoritária, que não admite ser questionada, criticada e que não se abre para um diálogo franco e respeitoso com a diversidade e a sociedade.

A mente fundamentalista não se permite duvidar do que crê e não aceita dialogar com as diferenças.[10]

 

para um fundamentalista não há diálogo. Se um fala em nome de Deus e o outro não, que conversa é possível?[11]

 

Mas o grande ponto do fundamentalismo é que ele produz uma visão que se percebe como verdade absoluta. A mente fundamentalista tende a entrar em pânico diante de dúvidas e questionamentos[12]

 

O fundamentalista não dialoga, porque não se propõe a ouvir; não aprende, porque parte do pressuposto de que só pode ensinar. O mundo fica dividido entre salvos e perdidos, entre bem e mal, e a fronteira delimitada pelo conjunto de crenças da instituição religiosa.[13]

 

o mais relevante é submeter nossa doutrina à reflexão, à comunhão, ao exercício permanente da autocrítica à luz das demandas e necessidades do nosso tempo.[14]

 

Espiritualidade é abertura, fundamentalismo é fechamento. Espiritualidade se move nas perguntas, fundamentalismo, em certezas irretocáveis. Espiritualidade é experiência e contemplação, fundamentalismo é doutrina. Espiritualidade se move no amor e na liberdade, fundamentalismo, na culpa e no medo. Espiritualidade transita nas diferenças e percebe a diversidade como expressão sagrada, fundamentalismo vê a diversidade como maldição. Portanto, a experiência religiosa é saudável quando alimenta a espiritualidade sem sufocá-la.[15]

Há espíritas que, infelizmente, por não encontrar ambiente saudável para acolhimento, escuta e amparo, entram em depressão, adoecem.

Pessoas que perderam algum familiar por meio do suicídio e ainda são violentados por um terrorismo psicológico cruel que, ao invés de acolher e prestar compaixão e solidariedade, gera medo e angústia.

Há espíritas que, frente às enormes desigualdades sociais e a absurda quantidade de pessoas desabrigadas e dormindo nas calçadas, justificam a si mesmas que está tudo conforme a justiça divina, tratando-se de um processo de expiação que cumpre àquele indivíduo passar e não há muito o que pode ser feito.

Há espíritas que associam todo problema psíquico à obsessão e questões espirituais, quando há muitos casos em que o tratamento precisa ser com um profissional da Psiquiatria e com um Psicólogo.

Há jovens que frequentam evangelização, mocidade e, depois de adultos, não retornam nunca mais ao centro espírita pois ao ingressar na universidade, em movimentos sociais ou ter acesso a outros saberes e experiências, identificam que o espaço da instituição espírita não os comporta mais porque não os aceitará como são e pensam, não lhes possibilitando mais espaço de atuação frutífera.

CONCLUSÃO

A questão é que o Espiritismo não foi concebido para ser fechado, dogmático, frio, autoritário. E se alguns o fizeram assim, ele não precisa ser assim. Há formas acolhedoras, dialógicas, críticas, humanistas de se apropriar e relacionar com o Espiritismo. Ele não precisa ser opressão, medo ou culpa, na verdade pode ser libertação, impulso, leveza, suporte para nosso crescimento individual e mesmo social.

O Espiritismo tem, como principal contribuição intelectual, apresentar uma lente para observação e análise da realidade. Um óculo composto pelas ideias de Espírito, mediunidade, Deus, reencarnação e evolução. Olhar para a vida levando em conta esses conceitos altera muitas conclusões, ações e mentalidades.

Do ponto de vista moral, sua principal contribuição é o consolo e a esperança. Ao apontar e demonstrar empiricamente que há um princípio de vida em nós que sobrevive à morte do corpo físico, evidenciando que a vida não cessa, muitos de nós adquirimos força para nos erguer e lutar perante as adversidades. Saber que nossos amores continuam vivos ressuscita pessoas em vida. Conceber que a vida material é extremamente importante e valiosa, mas que é apenas uma etapa da nossa jornada, é como expandir horizontes.

Do ponto de vista social, ele pode estimular nossa sensibilidade e compaixão, transformando-as em reflexão e ação concretas para alterar o status quo, seja em escala micro, média ou macro. Ao nos evidenciar o valor da vida e da encarnação, pode incutir um senso de urgência para as mudanças que precisam ocorrer na coletividade para que o nível de bem-estar coletivo seja cada vez maior, evitando sofrimentos evitáveis. Ao apresentar as consequências espirituais de nossas ações, pode despertar para um nível maior de responsabilidade e consciência perante os outros.

Por fim, do ponto de vista institucional, o movimento espírita não precisa ser algo homogêneo e pasteurizado. Ele pode e não tem como deixar de ser diverso, plural. A casa espírita precisa ser um grande espaço de sociabilidade, de encontros, convivência. Atualmente, vejo nitidamente que a maior contribuição que a casa espírita me proporcionou foi a convivência/sociabilidade. Conhecer pessoas diferentes, com histórias diversas. Construir vínculos. Vivenciar experiências por meio do trabalho voluntário. As conversas após as reuniões até depois da meia noite na rua. Vidas encontrando outras vidas. Atravessar e ser atravessado por outras trajetórias. Não podemos abrir mão dessa dimensão da casa espírita como espaço de encontros - para muito além de doutrina ou estudo somente. O próprio nome já diz: “casa espírita”. Antes de ser "espírita", tem que ser "casa".

Por um Espiritismo que seja liberdade e libertação, tanto na dimensão espiritual, quanto na individual e na social. Por um Espiritismo que seja estimulador da espiritualidade. Por um Espiritismo que alimente a espontaneidade, a autenticidade e a humanidade. Por um Espiritismo que possa ser meio, ferramenta de crescimento para aqueles que o conheçam. Por um Espiritismo leve, risonho e alegre.

 

REFERÊNCIAS

KARDEC, Allan. A Gênese [tradução de Guillon Ribeiro da 5a ed. francesa]. 53. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2013.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos: princípios da Doutrina Espírita [tradução de Guillon Ribeiro]. 92. ed. 2. Reimp. Rio de Janeiro: FEB, 2012.

KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns, ou, guia dos médiuns e dos evocadores: Espiritismo experimental [tradução de Guillon Ribeiro a partir da 49a edição francesa de 1861]. 81. ed. 1. imp. (Edição Histórica). Brasília: FEB, 2013.

KARDEC, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos 1866 [tradução de Evandro Noleto Bezerra]. Brasília: Federação Espírita Brasileira.

KARDEC, Allan. Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Allan Kardec [tradução de Evandro Noleto Bezerra]. 1. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005.

XAVIER, Francisco Cândido. Jesus no Lar. 37. ed. 8. imp. Brasília: FEB, 2014.

VIEIRA, Henrique. O Amor como Revolução. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.



[1] A abordagem que Kardec fez da questão racial – presente na Revista Espírita de Abril de 1862 –, a questão 822 a) de O Livro dos Espíritos ou vários trechos do livro A Gênese contém ideias e teorias que a ciência e o tempo provaram extremamente equivocados. Ou seja, a obra kardequiana não é algo divino que desceu puro dos céus. É, antes, a obra de um ser encarnado, com a participação de muitos outros encarnados e desencarnados, todos esses em processo de evolução e sob a influência de um tempo, espaço, cultura e sociedade.

[2] Allan Kardec, na Revista Espírita de Julho de 1866, na página 299.

[3] Allan Kardec, em O Livro dos Médiuns, item 343.

[4] Allan Kardec, em A Gênese, item 55.

[5] Allan Kardec, em Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Kardec, Discursos Pronunciados nas Reuniões Gerais dos Espíritas de Lyon e Bordeaux, item 1.

[6] Allan Kardec, em Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Kardec, Discursos Pronunciados nas Reuniões Gerais dos Espíritas de Lyon e Bordeaux, III parte.

[7] Allan Kardec, em Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Kardec, Discursos Pronunciados nas Reuniões Gerais dos Espíritas de Lyon e Bordeaux, III parte.

[8] Henrique Vieira, em O Amor como Revolução, p. 62.

[9] Neio Lucio, pela mediunidade de Chico Xavier, no livro Jesus no Lar, capítulo 3.

[10] Henrique Vieira, em O Amor Como Revolução, página 57.

[11] Henrique Vieira, em O Amor Como Revolução, página 59.

[12] Henrique Vieira, em O Amor Como Revolução, página 63.

[13] Henrique Vieira, em O Amor Como Revolução, página 58.

[14] Henrique Vieira, em O Amor Como Revolução, página 59.

[15] Henrique Vieira, em O Amor Como Revolução, página 65.

05 abril 2025

Fato Espírita - Inteligência e Simplicidade - Eugenio Lara

 


Fato Espírita - Inteligência e Simplicidade
 

    Eugenio Lara, (23/7/1962 - 6/6/2024). Arquiteto e designer gráfico, membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita, editor-fundador do site PENSE – Pensamento Social Espírita.

Há pessoas que são espíritas sem que tenham consciência disso. Pensam, sentem e vivenciam ideias e valores que muitos militantes espíritas “velhos de guerra” nem imaginam como fazê-lo, mergulhados que estão em seu próprio egoísmo. Normalmente, esse fenômeno acontece e mostra-se com mais evidência em pessoas que não tiveram, na atual existência, a oportunidade de se instruir, de aprimorar a inteligência através do estudo.

No processo evolutivo, o homem humilde, mas de bom coração, que não teve acesso ao estudo nessa vida, pode estar bem mais perto da perfeição relativa do que o sujeito extremamente intelectualizado, com um quociente de inteligência (Q.I.) altíssimo, mas que se mostra insensível e fechado em si mesmo, quando se trata de abrir seu coração para o outro.

Realmente, o Espiritismo é bem esclarecedor nesse aspecto. Afirmam os espíritos que “o homem simples, mas sincero, está mais adiantado no caminho de Deus do que aquele que aparenta o que não é.” (Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, q. 828-a). A arrogância, o despeito e a vaidade tomam conta de suas atitudes, de seu comportamento que, visto sob o ponto de vista moral, mostra-se ridículo e patético. É o que Deolindo Amorim (1906-1984) chama de falsa cultura: “é exibicionista, mas a verdadeira cultura é temperada pela humildade, sem exagero, sem atitudes impressionantes.” (Evangelho e Cultura, em Ideias e Reminiscências Espíritas).

Todas as pompas e trejeitos sofisticados não fazem do homem culto e intelectualizado um verdadeiro homem de bem. Isso não significa, contudo, que devido a esse fato, tenhamos de valorizar a ignorância em detrimento do desenvolvimento intelectual. Como diz Deolindo Amorim no mesmo artigo citado: “ao invés de provocar o orgulho ou a empáfia, como tantas e tantas vezes se diz, a verdadeira cultura cria condições íntimas para a humildade, mas a humildade raciocinada e não a humildade convencional, que encobre a presunção recalcada”.

O Espiritismo nos ensina que o progresso intelectual é incessante, permanente e antecede ao progresso moral. É que o desenvolvimento da inteligência, da razão, abre portas para o desenvolvimento moral. Através do livre-arbítrio o ser humano delibera, exercita seu intelecto e cria situações, dilemas, promove conflitos que exigem decisões, definindo assim caminhos e escolhas morais.

Sem inteligência não há razão. E sem raciocínio não há livre-arbítrio. Não dá para pensar em ética, moral e valores sem a existência do livre-arbítrio. Não há o bem, nem o mal. Haveria apenas um ser que age sem consciência moral, ou o que é pior, age imaginando que está agindo com consciência, mas que, na prática, age como um animal, ainda mergulhado no estado natural.

Na verdade, os maiores obstáculos ao pleno desenvolvimento intelecto-moral são o egoísmo e a vaidade. Enquanto o sujeito permanecer bem no alto do pedestal de sua arrogância, não perceberá o quanto ainda tem que aprender. A sensação de superioridade intelectual ofusca a necessidade interna de progresso. É o sabe-tudo, o metido a sabichão, que não percebe o quanto ainda terá de caminhar para ser considerado um homem sábio.

A propósito, o exemplo do grande filósofo grego Sócrates (469 a.C. - 399 acc.) vem bem a calhar. Quando seu amigo Querefonte disse-lhe que para o Oráculo de Delfos, ele era o homem mais sábio de Atenas, mostrou-se surpreso: “Como posso ser o homem mais sábio de Atenas quando sei tão pouco?” Ao invés de se sentir o “special man”, o “number one” e tirar proveito disso, apenas dizia: “só sei que nada sei”. Essa atitude de humildade, oriunda do autoconhecimento, levou o grande filósofo a um permanente questionamento, à incessante busca da verdade, a se colocar sempre à disposição para debater suas ideias.

Deolindo Amorim tem, portanto, toda a razão quando afirma que “quanto mais culta é a criatura humana, mais humilde ela se torna, porque sabe, e não é mais necessário que alguém lhe diga, que o legítimo conhecimento só tem proveito para o espírito quando não se deixa influenciar pela vaidade, pela arrogância, pelo egoísmo”. 

Artigo publicado em setembro/2013 no Jornal Abertura, do ICKS-Instituto Cultural Kardecista de Santos.