05 outubro 2025

MUJICA E O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA UMA ANÁLISE ESPÍRITA, NÃO MORALISTA.- Ricardo de Morais Nunes

 

MUJICA E O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA                 

UMA ANÁLISE ESPÍRITA, NÃO MORALISTA.


Ricardo de Morais Nunes, Servidor Público, 
Bel em Direito, Lic. em Filosofia, Presidente da CEPABrasil          

             

Em 13 de maio de 2025 faleceu José Alberto Mujica Cordano, mais conhecido     como Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai. Pensamos que para nós, espíritas, compreendermos um personagem com a história de Pepe Mujica, é necessário amplitude de pensamento, requer sairmos do senso comum, dos jargões simplistas e condenatórios, tão próprios da extrema direita de nosso tempo, a qual normalmente julga pela superfície das coisas, de forma moralista, sem ir à profundidade dos problemas, sem ir ao campo das intenções e, também, das estruturas sociais.

Pepe Mujica foi um político, não foi um religioso ou espiritualista de qualquer denominação. Esse dado é fundamental para que possamos começar a tentar entender seus valores e ações nesse mundo. Mesmo conhecedores da polêmica sobre a filiação ideológica de Mujica que analisa se ele era reformador ou revolucionário, podemos dizer que o que influenciou Mujica, em termos de concepção filosófica de mundo, além de um ideário nacionalista, foi uma visão materialista de cunho marxista.

Na compreensão marxista, esse mundo que vivemos, traz uma violência de classes intrínseca, pois o sistema capitalista é altamente violento e excludente de grandes parcelas da população no sentido do acesso aos bens da vida, seja o trabalho, a educação, a saúde, a alimentação, a moradia, o saneamento básico etc.

Há, no mundo, segundo a vertente filosófica marxista, enormes contingentes de seres humanos, em geral trabalhadores, não detentores dos meios de produção, possuidores apenas da sua força de trabalho, que se encontram desamparados, jogados à sorte, em razão de um sistema econômico que se diz democrático, mas que desampara milhões de pessoas.

O marxismo nos fala de uma violência “estrutural” do sistema econômico capitalista, que vai além da violência meramente individual, essa violência estrutural tem a ver com a forma econômica e política em que a sociedade está organizada.

Podemos ver aspectos dessa violência em vários campos de nossas sociedades capitalistas contemporâneas. É facílimo verificar, por exemplo, que a esmagadora maioria de presos do sistema prisional brasileiro, por exemplo, são jovens das comunidades carentes do Brasil, em grande parte negros, que são facilmente aliciados pelo tráfico de drogas, ante a falta de oportunidades para as suas vidas nas comunidades desamparadas em que vivem, nas quais, via de regra, o Estado não está presente.

Esses jovens poderiam estar aspirando à universidade para serem médicos, engenheiros, advogados, poderiam sonhar em ser músicos, dançarinos, atores e atrizes, poderiam desenvolver suas vocações como mecânicos, eletricistas, padeiros, encanadores, entre tantas possibilidades profissionais, no entanto, desde a juventude, às vezes, desde a adolescência, possuem seu destino marcado por uma ficha criminal e por passagens por estabelecimentos penitenciários ou educacionais para menores infratores. Trata-se de um desperdício brutal de seres humanos jovens, com potencialidades para servir à sociedade.

Se não levarmos em consideração esses dados da realidade, seremos levados a pensar que o problema desses jovens é exclusivamente moral, o que seria um erro, pois o problema desses jovens passa pela análise econômica-política-social.

O marxismo, dentro desse contexto, aceita a violência revolucionária para que se possa livrar o mundo dessas mazelas, no sentido de fazer um mundo melhor que livre o ser humano da violência estrutural das sociedades capitalistas e que vá na direção da emancipação humana. Podemos concordar ou discordar dessa teoria, mas não podemos perder de vista que se trata de uma teoria filosófica, que até mesmo se pretende científica no campo das ciências sociais, sendo que, gostemos ou não, procura dar conta da realidade. Essa visão de mundo influenciou profundamente o jovem Mujica.

  Do ponto de vista político e histórico é necessário levar em conta, igualmente, que na década de 60 do século passado, havia uma euforia na América Latina com as ações armadas. O exemplo cubano causou imensa esperança em toda a América Latina à época, inclusive, no povo cubano, que apoiou aquela revolução, que foi realizada contra um ditador apoiado pelos norte-americanos, de nome Batista.

É nesse contexto que devemos falar das ações revolucionárias de Mujica. De fato, Mujica participou de um grupo guerrilheiro que lutou, com armas na mão, contra aqueles que entendia, à época, como mantenedores da violência estrutural na sociedade uruguaia.

Há quem critique Mujica por ter participado de um grupo guerrilheiro em época democrática. Pode ser que a avaliação de Mujica e seus companheiros revolucionários tenha sido equivocada nesse sentido. A própria esquerda debate sobre o tema do momento certo para ações de tipo armado, há correntes de pensamento na esquerda que entendem que a luta armada só se justificaria frente a ditaduras.

Sobre esse tema podemos ver a opinião de Mujica, na reportagem do portal uol de 13.05.2025: “Parte da população uruguaia culpa os tupamaros pela espiral de violência que levou ao golpe militar de 1973. Para Mujica, no entanto, seu país vivia uma “democracia doente” e a ditadura era inevitável, assim como ocorreu em outros países da região”.

De fato, em 1973, o Uruguai se torna uma ditadura, conforme o espírito do tempo de golpes militares na América Latina. O grupo revolucionário de Mujica se manteve ativo, por alguns anos, após o advento da ditadura uruguaia lutando contra essa ditadura e pagando o preço por isso. Mujica, por suas ações, foi preso.

Existe um filme muito interessante de nome “Uma noite de 12 anos” que retrata as condições degradantes da prisão de Mujica.  Segundo o historiador Dércio Fernando   Moraes Ferrari, em reportagem para o portal uol, em 13.05.25:

Mujica foi preso em absoluto vazio jurídico, já que não foi julgado e nem acusado, sua prisão extrajudicial poderia ser considerada, para todos os efeitos, um sequestro militar”.

Por fim, Mujica sai da prisão em 1985.Nessa ocasião renúncia aos seus ideais de luta armada e se empenha no processo de redemocratização do Uruguai. Após ter passado pelos cargos de deputado, senador e ministro de Estado chegou à presidência do Uruguai em 2009.

Exerceu a presidência da República com espírito humanista e democrático. Jamais se pôs a querer vingar-se das humilhações sofridas no cárcere e jamais cortejou qualquer possibilidade de implantar uma ditadura de esquerda no Uruguai. Pouco antes de morrer ajudou a eleger um correligionário seu à presidência da República.

Como espírita, não sou favorável a métodos violentos de transformação social, pois acredito que a violência traz traumas profundos, difíceis de curar, nos indivíduos e nas sociedades, mas compreendo o contexto político, histórico e filosófico do qual partiu Mujica para suas ações. Também não confundo a violência do opressor com a violência do oprimido.

 É necessário, nesse ponto, considerarmos, com realismo, o processo histórico, o qual nos demonstra, que, muitas vezes, processos de transformação social ocorrem através de lutas sociais violentas. Para ficar apenas em alguns exemplos, a Revolução Francesa contra a aristocracia monárquica, as guerras de independência nacional de muitos povos, inclusive da América latina, e a guerra civil norte americana com vistas a abolição da escravatura, entre outros movimentos, demonstram a triste realidade da violência na história que ainda não foi superada pelos povos, mas que, apesar de tudo, serviram a movimentos libertadores de povos e grupos sociais oprimidos.

 Na verdade, a violência revolucionária não nasce do vácuo, do vazio, nasce de outras violências institucionalizadas geralmente não categorizadas como violência. Nesse sentido, Ghandi e Martin Luther King tentaram abrir novos e excelentes caminhos de emancipação política não violenta, mas, paradoxalmente, foram mortos violentamente, apesar de seu pacifismo. Trata-se de tema extremamente complexo e que foge muitas vezes ao nosso desejo pessoal, legítimo e ético, e espírita, de paz entre as pessoas e os povos.

A violência, no caso de Mujica, visava a um fim maior, conforme as crenças e convicções filosóficas e políticas do seu grupo, tinha por objetivo a emancipação de seu povo rumo a um estágio superior de qualidade de vida e democracia para todos os uruguaios. Mesmo que não concordemos com ações violentas não podemos esquecer desse dado fundamental de análise. Não se trata de justificar, mas de compreender as lições da história.

O espiritismo, por sua vez, possui toda uma reflexão ética esclarecedora sobre o problema das intenções, das motivações interiores e responsabilidades. Nesse sentido, Mujica arriscou sua vida por ideais coletivos e não por motivos   de caráter pessoal, egoísticos.

   Uma das características mais nobres de Mujica era seu desprendimento em relação aos bens materiais. Mujica, seu fusca e seu sítio, ficarão gravados para sempre na memória de todos aqueles que entendem que a política deve ser feita sem apego aos bens materiais e às benesses do poder.

O exemplo de Mujica se parece, em certa medida, com a história de Nelson Mandela. Mandela, em sua juventude, optou pela luta armada, porém após sair da longa prisão que lhe foi imposta pelo regime segregacionista da África do Sul chegou à presidência da República com espírito de tolerância e inclusão de todos os sul Africanos, brancos e negros, em uma mesma sociedade.

Encerramos o presente artigo com uma reflexão de Mujica sobre o ódio, o amor, e os defeitos humanos, colhida no portal uol de 13.05.25: “Tenho meu quinhão de defeitos. Sou apaixonado. Mas há décadas não cultivo o ódio em meu jardim. Aprendi uma dura lição que a vida me ensinou: o ódio acaba estupidificando por que nos faz perder a objetividade frente às coisas. O ódio é cego, como o amor, mas o amor é criativo, e o ódio destrói-nos”.

27 setembro 2025

Live de lançamento do Movimento Espírita Progressista (MEP) - dia 03/10/25, às 20h

 

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20 setembro 2025

Do Progresso - Flávio C. Bello

 

                                            Do Progresso  

 Flávio C. Bello
 Formado em História na UFRGS, professor aposentado do ensino básico, espírita vinculado ao CCEPA e a casa espírita "A Nossa Casa" em Porto Alegre. Estudante da temática espírita com ênfase nas Leis Morais. 

 

“É precipitado e quase absurdo acreditar que o progresso deva

necessariamente ocorrer.” (Nietzsche)

Contextualizando e identificando pressupostos

 

Kardec estava inserido na mentalidade da “modernidade triunfante” do século XIX que via a rápida industrialização, urbanização e modernização tecnológica, apenas como evidências inequívocas de progresso da humanidade. Nesse contexto, nosso fundador pensava o progresso imerso na mentalidade positivista presente no espirit du temps do século XIX.

 

A certeza do progresso inexorável, automático, é característica do positivismo e da maioria dos pensadores iluministas, que transformaram a ideia de progresso em um dogma.

No anticlerical Iluminismo francês, a concepção de Providência assumiu um sentido mais deísta. Para os iluministas, não se necessita mais da intervenção direta e constante de um Deus transcendente, pois a ideia de progresso como uma lei natural imanente, que através da razão, conduziria a humanidade rumo à perfeição, seria uma “versão secularizada” da crença cristã na divina providência.

Antônio Carlos Lobão [1] identifica que foi a partir da implantação do capitalismo no século XVIII, que a no Progresso se transformou num paradigma para a Humanidade (conforme o sentido atribuído por Thomas Kuhn à categoria de Paradigma), constituindo-se no grande pilar sobre o qual estão sustentados os principais valores da nossa civilização contemporânea. Portanto, não seria apenas para o espiritismo que o paradigma do progresso assumiu uma posição de grande relevância e centralidade.

 

Em Kardec, os agentes causais que ativam o progresso seriam:

i)        a natureza   humana   onde   o   progresso   é   uma   lei   inevitável,

ii)     a providência divina, que além de criar a lei do progresso estaria intervindo constantemente para que ela seja cumprida,

iii)    a influência dos indivíduos extraordinários, cujas qualidades teriam sido desenvolvidas individualmente ao longo de suas encarnações, fora do contexto social em que viviam e exerceram sua influência.

 

Como as leis naturais foram criadas por Deus e os indivíduos extraordinários seriam “instrumentos de Deus”, o grande agente causal do progresso é, para Kardec, a providência divina.

O providencialismo impondo a lei do progresso está bem explícito em O Livro dos Espíritos (LE):

 

..se o homem progride, é que Deus assim o quer; (item 778)

…quando um povo não avança bastante rápido, Deus lhe provoca, de tempos em tempos, um abalo que o transforma. (item      783)

…porque deve chegar ao fim determinado pela Providência” (item 783) e    ainda, “os homens que tentam deter a marcha do progresso, seriam pobres seres que Deus castigará… (item 781-a)

 

Em Kardec, a ideia de progresso, oriunda do iluminismo e do positivismo, conecta-se em perfeita harmonia com o providencialismo cristão. O casamento entre a razão iluminista e o providencialismo, seria possível, pois por mais que os desígnios da providência possam parecer misteriosos, nada permite supor que eles sejam contrários à razão. Na disputa entre a liberdade e a vontade divina, o que se ressalta é antes a limitação da condição humana.

Problematizando

{1} Kardec faz a separação entre o progresso moral e o progresso intelectual, reproduzindo a lógica do pensamento iluminista, para quem, na medida em que a razão se expandisse e o conhecimento crescesse, a vida necessariamente melhoraria, sendo o desenvolvimento moral uma consequência do desenvolvimento da razão. Assim, mais do que antecipar-se ao progresso moral, o progresso intelectual seria um pré-requisito dele, “o fruto não pode vir antes da flor” (LE, item 791).

 

No século XX, a antropologia demonstrou que povos ditos “primitivos” podem vivenciar com maior intensidade, valores éticos como igualdade e fraternidade, do que povos ditos desenvolvidos ou “civilizados”. Sendo assim, o progresso intelectual e tecnológico, ao contrário do que Kardec acreditava, não seria necessariamente um pré-requisito, ou uma fase anterior e necessária para o progresso moral. Para o sociólogo Edgar Morin [2], o progresso carrega dentro de si um buraco negro, que é a ausência de qualquer progresso moral que acompanhe o progresso científico-técnico-econômico. Foi esse progresso que tornou possíveis Auschwitz, Hiroshima e Gaza.

 

Precisamos fugir da tentação de confundir o progresso das técnicas e do conhecimento com o progresso da Humanidade em si. O progresso tecnológico, quando se autonomiza com relação aos “fins que deveria servir”, transforma-se em progresso do poder, da opressão e da dominação, sendo necessário observar a que interesses ele está servindo.

 

{2} Para o sociólogo Piotr Sztompka [3], uma questão central é:

Progresso para quem e sob que aspecto?

Não existe progresso absoluto. A especificação dos valores tomados como medidas ou critérios de progresso é sempre necessária. O mesmo processo pode ser visto como progressivo, ou não, dependendo dos valores preferenciais assumidos, pode representar progresso para uns e regresso para outros.

 

O progresso não é um conceito puramente objetivo, descritivo, é também uma categoria de valor que pode variar entre pessoas, classes sociais, grupos e nações. Quando trabalhamos sujeitos históricos concretos em contextos específicos a ideia do progresso universal e absoluto da humanidade pode se apresentar como uma construção ideológica a serviço do status quo.

 

{3} Para Kardec, a solução dos problemas produzidos pelo progresso estaria no próprio progresso, numa analogia com a biologia, como as sementes ou larvas que contém nelas mesmas tudo o que lhes acontecerá, como se o futuro já estivesse contido no seu início. O futuro aparece aqui como um espaço de projeção capaz de absorver e solucionar tudo o que não tinha lugar ou que era indesejado no presente.

 

Além disso, faz parecer que os males sociais e todas as mazelas produzidas pelo progresso econômico e tecnológico, seriam expressões do próprio progresso humano em andamento. Na medida em que o progresso continuar avançando, a Humanidade atingirá o progresso moral, que solucionará (sempre no futuro), “os males que o progresso provocou”.

 

{4} Allan Kardec indagou (LE, item 797) como o homem poderia ser levado a reformar as suas leis. Registrou a seguinte resposta (negrito nosso):

Isso acontecerá naturalmente, pela força das circunstâncias e pela influência das pessoas de bem que o conduzem na senda do progresso. muitas que foram reformadas e muitas outras   ainda   o serão. Espera!

Mas como assim, espera?

Se o progresso desenrola-se naturalmente, não existe a necessidade de lutar por um futuro melhor, pois esse viria automaticamente. Essa concepção de progresso estimula uma atitude passiva, contemplativa e adaptativa, do tipo “esperar para ver”. Caberia ao Homem, não reconhecido como o principal agente histórico, a resignação e a espera, aguardando a ordem natural do progresso se realizar “pela força das coisas”.

A passividade contemplativa ante os desígnios divinos e a na futura instalação do reino de Deus é preservada, porém convertida na certeza do progresso inevitável que acontecerá pela força natural das circunstâncias, independente da ação do ser humano.

 

Precisamos abandonar a ilusão de que o progresso acontece naturalmente pela força das coisas e admitir a sua contingência, que ele pode ou não ocorrer, dependendo das ações que as pessoas realizam. Toda a ideia de um futuro já definido funciona como gerador psicológico de acomodação e passividade sobre os elementos sociais ativos e criadores do presente, destituindo-os de sua própria vitalidade, quando estes deveriam estar agindo, criando e contribuindo pela construção coletiva de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária.

 

A concepção de progresso inevitável que conduz a humanidade rumo a um fim determinado, representa para o filósofo Walter Benjamin

[4] um conformismo, um conservadorismo que tenta impedir que outras histórias, que não aquela que se desenrola no presente, possam se fazer. Como se houvesse um único presente necessário para se chegar ao futuro, e este precisaria ser exatamente como se apresenta. Benjamin considera um equívoco alienante considerarmos que vivemos o único presente possível que surge mecanicamente de um passado, que por sua vez é redesenhado ele mesmo como o único passado possível, e sob um quadro fatalista no qual as três instâncias da temporalidade (o passado, o presente e o futuro) estariam enredadas por um progresso inevitável, naturalizado, no qual podemos sempre confiar cegamente, no sentido de que trará um mundo sempre melhor (na verdade não apenas um mundo melhor, mas de fato “o único mundo possível”). Assim, o progresso para Benjamin, pode assumir características de ilusão, uma política de conservação do status quo.

 

Lobão também identifica o caráter conservador que a noção de progresso inevitável assume. Tanto o paradigma do progresso precisa das transformações decorrentes do Capitalismo, com seu caráter progressivo de constante inovação para se tornar hegemônico, quanto o sistema capitalista precisa da ideologia subjacente ao paradigma do progresso, para a legitimação da sua dominação e subordinação à lógica da acumulação, colocando o capitalismo como única alternativa para alcançar um futuro luminoso. Para Lobão [1]:

 

A ideia de progresso transformada em paradigma, sustenta a certeza de um futuro radiante para todos, certeza que legitima a dominação burguesa e permite, de certa forma, manter num patamar funcional as contradições do sistema e amortecer a luta de classes. Em outras palavras, ao se colocar como portadora de um projeto social que tende a resultar no bem-estar de toda a população, a burguesia encontra a partir da ideia de progresso, um forte argumento a favor da acumulação.

 

O progresso não pode garantir que o futuro será sempre melhor que o passado (garantia é incompatível com história). Ele não é inerente à história, nem acontece como resultado automático de mecanismos sociais imanentes. O progresso é sempre uma possibilidade aberta de aperfeiçoamento, resultado   de   um   processo    de    aprendizagem. Uma possibilidade histórica resultado das ações humanas plurais e coletivas e não o produto inevitável da vontade divina ou de indivíduos excepcionais. Depende da vontade e da ação dos homens, que sendo livres, fazem suas escolhas. Como diz Walter Benjamin: “…o presente é sobretudo o tempo da ação, sobre a qual o futuro poderá ser moldado.”

 

{5} Paul Tillich [5] afirma que nem tudo estaria sujeito ao progresso, ou podemos afirmar que existe progresso nas artes? Que uma estátua do século XIX é superior a uma dos gregos antigos? Ou que um escritor, apenas por ser contemporâneo, é superior a Shakespeare? Admite-se a possibilidade de um progresso técnico, ou seja, na utilização e produção dos materiais, mas não a valoração de uma obra ou estilo em relação aos que os antecederam pelo fato de ser posterior. Talvez possamos falar em bons e maus artistas dentro de cada estilo, mas não há um estilo superior a outro por não haver um fundamento ou valor universal que possa estabelecer quem mais se aproxima dele, quem seja melhor ou pior.

 

Seguindo este raciocínio, Tillich também acredita que não existe progresso na Religião. Apesar de reconhecermos uma relação progressiva do Antigo para o Novo Testamento, isso não se aplica à essência da religião, que é a manifestação da “preocupação última”, a dimensão do encontro do espírito do homem com o Divino.

Para os espíritas, continuar acreditando na pretensiosa crença de que o espiritismo é um “cristianismo evoluído”, que representa o progresso das religiões e que em breve irá converter e unir toda a Humanidade seria uma atitude supremacista tão equivocada quanto qualquer tentativa de hierarquizar as religiões em superiores e inferiores.

 

Seguindo essa linha de raciocínio, Elias Moraes reflete que [6]:

As ideias de “terceira revelação divina” e do “consolador prometido” necessitam ser repensadas dentro do movimento espírita porque, em vez de facilitar o diálogo com a sociedade, esse tipo de argumento apenas equipara o Espiritismo a algumas propostas religiosas do mundo no que elas têm de pior, que é a pretensão de colocar-se como melhor do que outras.

                         Um Paradigma positivo, ainda que em crise

No mundo atual o futuro deixou de ser visto necessariamente como o lugar da redenção, como era no horizonte de expectativas da humanidade nos séculos XVIII e XIX. O progresso como o motor da história, como um fio condutor que confere racionalidade e sentido à aventura humana na Terra, perdeu a naturalidade que possuía.

 

Vivemos um momento histórico em que, se o ser humano não atentar para as ameaças de nosso tempo e a acelerada destruição do planeta produzida por ele próprio e sustentada por sistemas também por ele desenvolvidos; a catástrofe não é possível, mas bem provável.

Para que o conceito de progresso possa ser renovado sem ser removido do nosso horizonte ou mesmo negado como possibilidade, o espírita contemporâneo tem que abandonar a armadilha alienante que é trabalharmos apenas com as referências e perspectivas que Kardec dispunha em sua época, retirando da ideia de progresso as suas premissas enganosas.

 

Cabe ao espírita resgatar e valorizar a essência da ideia de progresso em Kardec, cuja principal medida é a excelência ética que implica na construção de uma vivência fraterna, plena de esperança de um mundo e um ser humano melhor.

A ideia de progresso continua tendo um papel determinante na construção da esperança como sentimento no mundo contemporâneo, porque ela alivia a tensão existencial entre o que as pessoas são e o que gostariam de ser, entre o mundo que temos e o mundo que queremos, retirando das adversidades e do sofrimento a última palavra.

 

Esperança não se confunde com ilusão ou alienação, não acredita no “futuro como salvação”, mas como enigma e possibilidade. A esperança se fundamenta na realidade que habita, detectando no presente problemático os traços que lhe permitem ver um mundo melhor como possível.

 

A esperança é o modo de atuação daquele que quer superar o sofrimento presente mediante a exploração de possibilidades fecundas que esse mesmo presente lhe sugere. O homem com esperança fala do progresso, mas não como algo infalível, mas sempre como uma possibilidade, um horizonte coletivo que se constrói e se cultiva no presente.


Referências:

[1]      Progresso e Capitalismo.

Dissertação de Mestrado de Antônio Carlos de Azevedo Lobão.

Progresso e capitalismo

Orientador: Renato Peixoto Dagnino Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de…

www.academia.edu

[2]       A sociologia da mudança social.

Autor: Piotr Sztompka. Editora: Civilização Brasileira.

 

[3]       O progresso carrega dentro de si um buraco negro.

"O progresso carrega dentro de si um buraco negro". Artigo de Edgar Morin

O Instituto Humanitas Unisinos - IHU - um órgão transdisciplinar da Unisinos, que visa apontar novas questões e buscar…

www.ihu.unisinos.br

 [4]        A crítica da história linear e da ideia de progresso. Um diálogo com Walter Benjamim e Edward Thompson.

Artigo de Leide Alvarenga Turini.

A crítica da história linear e da ideia de progresso

Leide       Alvarenga         Turini       Universidade           Federal        de                Uberlândia       (UFU) https://doi.org/10.14393/REVEDFIL.v18n35/36a2004-587…

seer.ufu.br

[5]       Tillich e a crítica à ideia de progresso.

Artigo      de     Cleber      A.    S.    Baleeiro.       Revista      Eletrônica                Correlatio         (nº   19, junho de 2011).

 

[6]        Contextualizando Kardec: do século XIX ao XXI. autor: Elias Moraes. Editora: AEPHUS.

[7]       Fundamentos para uma Teoria Social Espírita.

Autor: Luiz Signates. Editora: AEPHUS.

[8]        A Lei do Progresso (Parte 1).

O Cast dos Espíritos (Episódio 46).

https://youtu.be/uW0aemh2Adk

[9]        Estamos evoluindo? Religião e ideia de progresso. Exposição de Ângela Moraes. https://youtu.be/vjHDl2PQUWw

 

[10] A crítica à retrodição e à noção mecanicista de progresso: Nietzsche, Benjamin e Guha.

Artigo de José Costa D’Assunção Barros.

História Revista

A História Revista é uma publicação quadrimestral da Universidade Federal de    Goiás, dedicada à divulgação de pesquisas…   revistas.ufg.br

 

[10]       As falácias da ideia de progresso segundo Nietzsche.

Artigo de Renato Nunes Bittencourt. Acta Scientiarum. Human and Social Sciences. Maringá, v. 33, n. 1, p. 81–96, 2011.


As falácias da ideia de progresso segundo Nietzsche= The fallacies of the idea of progress…

Abstract: Apresentamos as críticas de Nietzsche ao ideário moderno de "progresso", entendido como aprimoramento da…

www.academia.edu

[11]        Notas sobre o progresso em Adorno (ainda).

Artigo de Eduardo Rocha. Revista ethic@, Florianópolis, v. 20, n. 2, 584–611. Ago. 2021.

[12]        Repensando a decadência e a validade da ideia de progresso hoje, a partir do pensamento de Paul Tillich: incitações e problematizações introdutórias.

Artigo de Elton Vinicius Sadao Tada. Revista Correlatio (Online) , v. 8, p. 119– 128, 2009.