17 junho 2025
05 junho 2025
CONTABILIDADE ESPIRITUAL - REINALDO DI LUCIA
CONTABILIDADE ESPIRITUAL
Qual o objetivo da reencarnação?
Aparentemente, esta é uma pergunta básica no âmbito da
doutrina espírita. Afinal, a reencarnação, considerada um dos pilares que
sustentam o edifício teórico do espiritismo, é ideia muito debatida em
palestras dos mais diversos gêneros, em todos os centros espíritas.
Ocorre que, infelizmente, há um erro de interpretação na
razão de ser da reencarnação. O movimento espírita encara-a como sendo uma
oportunidade dada por Deus para que os espíritos " resgatem os débitos do
passado ", ficando, assim, quites com a lei divina, e prontos para
recomeçar sua escalada evolutiva.
Os livros espíritas, especialmente os de autores
desencarnados, são pródigos em estórias que exemplificam esta visão: desde
cruéis senhores de engenho que, tendo maltratado seus escravos, renascem em
absoluta pobreza, sofrendo o escárnio da sociedade até assassinos que devem
morrer cruelmente, não faltam casos a exaltar a infalibilidade do velho ditado:
aqui se faz, aqui se paga.
Àqueles que buscam um motivo teórico para estes casos é
fornecida a explicação da lei de causa e efeito (ou, como é muito comum
dizer-se, a lei do karma): uma vez violada a lei de Deus, o efeito é imediato,
voltando ao infrator sobre a forma de sofrimento inevitável.
Deve-se ter em mente, contudo, que nada há, na base da
filosofia espírita, que justifique a ideia de reencarnação como punição ou
mesmo como resgate de faltas do passado. Kardec é claro ao postulá-la como
prova, isto é, como oportunidade de o espírito refazer, em outra ocasião, a
tarefa que não pode ou não soube realizar a seu tempo.
Mesmo se não se levar em consideração o argumento de
autoridade, isto é, deixando de lado o que diz Kardec, a própria razão deveria
levar a esta conclusão. A reencarnação como punição nada mais é que uma
reedição da pena de Talião, o famoso olho por olho, dente por dente. No fundo,
é apenas uma vingança, cujas reações, apesar de diferentes, são igualmente
funestas. Na melhor das hipóteses, o espírito reencarnante resigna-se a um
destino doloroso, do qual ele não pode fugir, não atuando proativamente em
benefício de uma efetiva regeneração íntima. Na pior das hipóteses, a reação é
de revolta, atrasando ainda mais o processo evolutivo.
O sofrimento não pode, de maneira alguma, estar previsto na
lei natural, como punição inexorável àqueles que a violam. Sofrimento é uma
reação pessoal a fatos da vida, estes sim relacionados diretamente às ações de
cada espírito, encarnado ou não. Aqueles que conseguem ter uma atitude positiva
perante a vida, pouco sofrem; já os que veem no próprio fato de viver um fardo
insuportável (oh! vida, oh! azar...) sofrerão sempre, por menores que sejam as
vicissitudes por que passam.
Reencarnação é prova, tal como provas há em qualquer escola
aqui na Terra. É uma oportunidade fantástica de aprendizado, possibilitando a
cada espírito demonstrar, para si mesmo, que pode continuar sua escala
evolutiva em outros níveis.
O espiritismo é, por si só, uma filosofia altamente
consoladora. Não deve incorporar o sofrimento existente em outras doutrinas,
muletas que, a pretexto de ajudar, obstruem o caminho evolutivo do ser. A
evolução deve ser feliz e prazerosa, mesmo quando difícil. E isto, quem faz
somos nós mesmos
20 maio 2025
A LENTA MARCHA DO PROGRESSO Marcio Sales Saraiva
Marcio Sales Saraiva - Escrevinhador, sociólogo e coordenador do Centro Espírita Herculano Pires (RJ). É doutor em Psicossociologia (Eicos/UFRJ).
Os seres humanos abandonaram seu “estado de natureza”, com suas organizações sociais primevas, para construir sociedades enormes e complexas, chamadas de “civilizações”.
Para o espiritismo (KARDEC, 2006, questão 776), não podemos confundir esse “estado de natureza” com a chamada lei natural, pois esta é, na verdade, lei de Deus, regendo o funcionamento cósmico. Em “O livro dos espíritos” encontramos dez aspectos dessa lei natural de regulação da vida, e um deles é a chamada lei de progresso.
O progresso humano faz parte dessa lei natural ou lei de Deus. Isso quer dizer que o ser humano não regride — nem espiritualmente, nem socialmente — ao seu estado de natureza ou “primitivo”. Em outras palavras, o progresso evolutivo espiralar é uma força endógena e espontânea (KARDEC, 2006, questões 778–779) que conduz a humanidade planetária. E, embora alguns seres humanos reacionários tentem impedir esse progresso, causando-lhe embaraços e retenções, ele ainda assim se afirmará gradualmente (KARDEC, 2006, questão 781), porque essa é a lei divina, essa é a vontade da vida que pulsa no mundo. De fato, não haverá paz global “sem trazer de volta do exílio ideias como a do bem-público, da boa sociedade, da igualdade, da justiça e assim por diante — ideias que não fazem sentido senão cuidadas e cultivadas na companhia de outros” (BAUMAN, 2000, p. 16). O progresso, hoje, envolve tais questões democráticas.
A civilização que temos — seja no capitalismo ou nos diversos modelos do antigo socialismo real — representa ainda um “progresso incompleto” (KARDEC, 2006, questão 790), pois falta maturidade aos seres humanos. Nós ainda não estamos “preparados” nem “dispostos” (KARDEC, 2006, questão 792) a viver numa sociedade igualitária, caridosa, ambientalmente sustentável e de bem-comum. Por outro lado, muitos acusam, ansiosamente, a lentidão desse progresso “natural” (os espíritos chamam-no de “regular e lento” – ver questão 783), mas eles sinalizam que esse processo poderá sofrer intervenções da lei de Deus para que ocorra uma “aceleração” revolucionária. Em outras palavras, certos abalos físicos ou morais poderão fazer a humanidade avançar mais celeremente rumo ao progresso social, econômico, cultural, político e espiritual. Por vezes, é preciso que o mal “chegue ao excesso” (KARDEC, 2006, questão 784) para que a sociedade perceba, com clareza, a necessidade “do bem e das reformas”, que poderão ser pacíficas ou não (vide lei de destruição).
De acordo com a concepção kardequiana, nossa civilização chegará ao ápice, à plenitude, quando estiver desenvolvida moralmente, vivendo cotidianamente a partir de uma ética das virtudes. Neste momento histórico em que ainda estamos mergulhados, aqueles que se julgam “civilizados” são, na verdade, apenas pessoas “esclarecidas” cognitivamente, mas carentes do componente ético-moral, embotadas no campo das virtudes e distantes do senso de irmandade e de comunhão necessários para um progresso pleno e autêntico da sociedade e de suas instituições (KARDEC, 2006, questão 793).
É importante frisar que Kardec, bom descendente da modernidade racionalista e do Iluminismo, compreende que o chamado progresso ético-moral será consequência do progresso intelectual/cognitivo. A razão — e não a irracionalidade das paixões destrambelhadas! — é o abre-alas para o avanço no campo das virtudes. Essa posição de Kardec não o torna ingênuo, pois ele tem clareza de que nem sempre o progresso intelectual e tecnocientífico traz o progresso ético-moral (KARDEC, 2006, questão 785). O século XX foi testemunha disso, e o XXI está nos mostrando, mais uma vez.
Os dois fenômenos (ou os dois progressos, cognitivo e ético) estão relacionados, é claro!, mas não de forma automática e mecânica. Podemos ter grande avanço educacional, científico e tecnológico, ainda ausente de uma sólida base ético-moral, pois a inteligência é uma força amoral, podendo servir ao bem ou à destruição.
Somente o tempo traz equilíbrio entre razão e ética, cognição e afetos, desenvolvimento intelectual-tecnocientífico e desenvolvimento ético-moral (KARDEC, 2006, questão 785). A ampliação da prática das virtudes é processual, assim como é processual a destruição de todas as manifestações de orgulho e egoísmo — que tomam forma em instituições socioeconômicas e políticas injustas — que impedem o surgimento de uma nova sociedade baseada no amor-caridade, no bem-viver e nos interesses da comunidade.
Contrariando o senso comum do conservadorismo que deseja eternizar leis e normas sociais, aprendemos com o espiritismo que as leis humanas — e seus aparatos jurídico-políticos — são variáveis e progressivas (KARDEC, 2006, questão 795), mudando ao longo do tempo. Somente a lei natural e divina é imutável, estável e perene, pois as demais leis sofrem processos contínuos de aperfeiçoamento — e assim deve ser. Esse aperfeiçoamento jurídico-político acontece, na visão kardequiana, pela “força das coisas” ou pela “influência das pessoas de bem” (KARDEC, 2006, questão 797), isto é, por razões endógenas e por ativismo social.
Significa dizer que a humanidade vai progredindo juridicamente e politicamente, aos trancos e barrancos, mas vai. O espiritismo é, nesse sentido, otimista e fonte de esperança. Exemplos não nos faltam: o direito trabalhista e previdenciário, a ampliação do sufrágio, a redução das penas de morte, a afirmação dos direitos humanos, o reconhecimento dos direitos LGBTQIA+, a ampliação da proteção a refugiados, o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas em Estados plurinacionais, as leis antirracistas etc.
Todos esses avanços civilizatórios dependem também de fortes investimentos públicos em educação. É na formação dos seres humanos que reside a fonte fundamental do processo de reformas (libertação e emancipação) que nos impulsiona ao verdadeiro progresso societário e espiritual (KARDEC, 2006, questão 796).
Para o espiritismo, a razão joga papel central, pois, sem progresso intelectual — educacional, científico, tecnológico e cultural —, o ser humano não saberia fazer escolhas, discernir o bem do mal e, portanto, não poderia ser responsabilizado por seus atos devido à sua ignorância. Assim, o espiritismo deve ser um aliado visceral das lutas pela educação, a exemplo de Darcy Ribeiro e Paulo Freire em nosso país.
Por que a educação é fundamental para o progresso?
A educação é fundamental porque o progresso da humanidade tem por base o progresso de seus indivíduos (KARDEC, 2006, questão 789). Observe bem: não se trata de dizer que o progresso, lei natural da vida, dependa exclusivamente dos indivíduos — pois, para Allan Kardec, o progresso segue seu curso estrutural, ainda que muitos indivíduos fiquem para trás. Por outro lado, ele ganhará maior força e velocidade quando, ao longo de várias encarnações, os indivíduos se tornarem pessoas melhores, mais caridosas e compassivas, mais preocupadas com o bem-comum e o bem-viver.
Essa visão kardequiana é coerente com a tese do sociólogo Norbert Elias sobre a sociedade dos indivíduos: para ele, não há uma oposição entre indivíduo e sociedade, mas uma interdependência contínua e dinâmica. Os processos de civilização ocorrem justamente na medida em que os indivíduos se transformam em suas maneiras de sentir, pensar e agir — e essa transformação repercute diretamente nas estruturas sociais. Por isso, quanto mais avançados são os indivíduos (do ponto de vista das virtudes), mais justa e fraterna será a sociedade que formam.
Quando esses indivíduos se tornarem maioria na sociedade, ela sofrerá profundas mudanças socioeconômicas, políticas e culturais, acelerando seu ritmo de progresso. Kardequianamente falando, a mudança social está profundamente conectada à transformação individual — pois, como dizem hindus e budistas, o mundo é uma teia.
E qual é a missão do espiritismo nesse contexto?
O espiritismo tem por missão contribuir com o progresso da civilização humana e do bem-viver, contrapondo-se à barbárie e à degradação ambiental, ética e psíquica. Nesse sentido, “nada é mais importante do que recuperar a paixão das ideias” (BADIOU, 2012, p. 59), tal como a da lei de progresso em Kardec.
É destruindo o materialismo grosseiro — e suas consequências (egoísmo, consumismo, avareza, culto ao dinheiro, negação da vida espiritual e do ócio criativo) — e ampliando os laços de irmandade e solidariedade (KARDEC, 2006, questão 799) que o espiritismo poderá ser mais uma alavanca progressista no mundo, ajudando a anular os “sintomas de uma corrosiva desesperança existencial” (BAUMAN, 2000, p. 25) que tende a implodir os laços sociais.
Não cabe aqui ansiedade, precipitação ou tentativa voluntarista de acelerar o tempo histórico. Sabemos que “o mundo contemporâneo é um recipiente cheio até a borda de medo e frustração” (BAUMAN, 2000, p. 62) e que nossa sociedade líquida está permeada por solidão, impotência, conformismo e incerteza (BAUMAN, 2000, pp. 11–13). Por outro lado, se quisermos resgatar a força do pensamento kardequiano, cabe a nós — espíritas — trabalhar, com esperança, resiliência e boa-vontade, pela hegemonia das forças progressistas, conscientes de que essa transformação “só poderá operar-se com o tempo, gradualmente” (KARDEC, 2006, questão 800). A natureza não dá saltos e “cada coisa tem o seu tempo” (KARDEC, 2006, questão 801) para frutificar.
Enquanto isso, a luta segue, pois as forças irracionais, conservadoras e reacionárias da globalização hegemônica — defensoras da primazia do mercado, da liberalização do comércio, da privatização, da desregulamentação financeira, da precarização do trabalho e da destruição das redes de proteção social e ambiental — buscam colocar entraves ao processo de emancipação humana. Sabemos que “o inimigo mais temível da política de emancipação” é a “interioridade do niilismo e a crueldade sem limites que pode acompanhar seu vazio” (BADIOU, 2012, p. 22).
Por isso, precisamos esperançar, como disse Paulo Freire, e nos unir ao processo de globalização contra-hegemônica, constituído “a partir de baixo” (SANTOS, 2013, p. 30), articulando questões pessoais, locais e globais contra a opressão, o colonialismo, a desigualdade (social, racial e sexual), a destruição dos empobrecidos, a catástrofe ecológica, a expulsão de camponeses e indígenas de seus territórios ancestrais, o endividamento de famílias e pequenos empresários, e a criminalização do protesto social.
O espiritismo poderá contribuir muito, nesse sentido progressista, se retomar suas bases kardequianas e fazer uma hermenêutica para o século XXI, afastando-se de alianças com teologias políticas conservadoras. É na articulação entre a salvífica caridade, o cuidado dos outros e a “luta política contra as causas do sofrimento” (SANTOS, 2013, p. 121) que o espiritismo poderá ser um espaço relevante para o progresso humano.
Bibliografia
BADIOU, A. (2012). A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo.
BAUMAN, Z. (2000). Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar.
KARDEC, A. (2006). O livro dos espíritos (Tradução de Evandro Noleto
Bezerra). Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira.
SANTOS, B. de S. (2013). Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos.
São Paulo: Cortez.
14 maio 2025
VI ENCONTRO: SUCESSO!
Uma das sugestões oferecidas às Diretorias da CEPABrasil e
do CCEPA foi de que, tanto a Federação Espírita Brasileira (FEB) como a
Federação Espírita do Rio Grande do Sul (FERGS) fossem convidadas a se fazerem
representar no evento, sendo que apenas esta última respondeu e se fez presente
no Encontro através de seus vice-presidentes Vinícius Lousada e Iraci de
Oliveira.
Além da Oficina, dos conferencistas e painelistas, foram
apresentados quinze (15) trabalhos por seus autores Adair Ribeiro Jr., Ademar
Arthur Chioro dos Reis, Alexandre Cardia Machado, Ana Cláudia Laurindo de
Oliveira, Jacira Jacinto da Silva, Mauro de Mesquita Spinola, Jerri Roberto
Almeida, Beto Souza, Klycia Fontenele Oliveira, Leandro Carvalho Dias, Luiz
Signates Freitas, Mariana Canellas Benchaya, Mônica Fonseca Mendes, Sérgio
Maurício S. Pinto, Ricardo Andrade Terini e Ricardo Morais Nunes. A moderação
foi exercida por Valéria Mokwa, Cláudia Regis, Dirce Leite, Delphine Gamarra,
Adriana Kessler e Delma Crotti. Todos os trabalhos estão publicados em E-book,
organizado por Magda Zago, já disponibilizado aos participantes e nas redes
sociais, inclusive de autores que estavam inscritos – Rafael Ludolf e Wilson
Garcia - mas não puderam comparecer.
Todas as apresentações – não transmitidas online - foram
gravadas em vídeos pela empresa de Lucas Overgoor, com excelente qualidade
profissional e estão disponíveis no canal YouTube da CEPABrasil, www.youtube.com/cepabrasil e do
CCEPA, https://www.youtube.com/@ccepars.
No sábado à tarde, houve um momento de intercâmbio mediúnico em que foram recebidas quatro mensagens de apoio e estímulo.
O encerramento ocorreu no domingo, dia 4 de maio de 2025, pela manhã, com a conferência do Prof. Moacir Araújo Lima, seguindo-se uma vivência de confraternização e arte, coordenada por Sandra Regis, coroando o pleno sucesso o evento e deixando nos participantes a sensação de plenitude e muita emoção pelos momentos de convívio, aprendizado, troca de experiências e profícuos debates sobre o tema proposto.
05 maio 2025
Mediunidade e Autoconhecimento – Menos ego e mais serviço - Dora Incontri
Dora Incontri:- Jornalista, escritora, doutora e pós-doutorada em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e da Universidade Livre Pampédia. Sócia da Editora Comenius.
Um dos primeiros posts que lançamos nesse blog da ABPE, escrito por Cláudia Mota, foi sobre nossa experiência no grupo de Mediunidade Pedagógica, em ação há vários anos. A reação favorável e os comentários do público demonstram o quanto estamos carentes de boas, consistentes e aprofundadas discussões sobre a prática mediúnica no movimento espírita. E mais, como rareiam reuniões e médiuns com trabalhos mais criteriosos, controlados e atitudes críticas e racionais em relação a essa prática.
Na atual configuração do
movimento no Brasil, temos duas situações recorrentes: um espiritismo quase sem
espíritos, com centros, grupos e pessoas inseguros para realizar um bom
trabalho de desobsessão ou de psicografia, por exemplo; e um espiritismo que
gira em torno de médiuns-gurus, que estão acima de qualquer análise crítica,
que são incensados por fãs e que se tornam líderes incontestáveis em seu meio,
em setores do movimento ou mesmo no movimento quase inteiro!
Três coisas muito importantes que
Kardec propôs e praticou e andam esquecidas: 1) a mediunidade é algo natural,
que pode ser praticada em grupos pequenos, com estudo, seriedade e princípios
éticos; 2) os médiuns, por melhores que sejam, estão sujeitos a falhas e por
isso devem submeter constantemente o que captam do além à crítica alheia e ao
cruzamento com percepções de outros médiuns; 3) os médiuns não devem procurar
(e nem mesmo aceitar) projeção, liderança e popularidade por serem médiuns
(Kardec nem nomeava os médiuns em seus livros). Que busquem projeção (se assim
desejarem) ou ganhem liderança, por suas próprias capacidades e não por serem
intermediários dos Espíritos.
Traduzindo esses três itens em
outras palavras: mediunidade é algo para ser desenvolvido tranquilamente, sem
muitas complicações, algo a ser democratizado e não sacralizado; os médiuns
precisam trabalhar seus impulsos narcísicos e praticarem mediunidade com
modéstia.
Isso não significa que não se devam
publicar coisas mediúnicas, fazer sessões públicas ou divulgar obras feitas
pelos Espíritos. Mas significa que tudo isso deve passar pela análise crítica,
tudo deve ser feito com desinteresse de projeção pessoal.
Ora, aí que entra uma questão
muito importante: para se exercer uma mediunidade honesta e consciente, sem
muita mistura de vaidade pessoal, é preciso que o indivíduo tenha o compromisso
do autoconhecimento. Esse mesmo que Sócrates já aconselhava tantos séculos
atrás, que se repete como uma recomendação no Livro dos Espíritos e hoje é muito facilitado pela possibilidade de
fazermos terapias, nas mais diversas abordagens existentes.
Conhecendo-nos melhor (o que
aliás é tarefa que não acaba numa existência), podemos em primeiro lugar saber das
nossas motivações internas mais profundas, vencer a imaturidade psíquica de
querermos ser adorados e mimados a qualquer preço, entender melhor como
funciona nosso psiquismo, precavendo-nos contras as armadilhas do egocentrismo,
do desejo de poder e outras tantas coisinhas que nos atrapalham
existencialmente. Dentro de uma abordagem psicológica, passamos a enxergar tudo
isso não mais como vícios, contra os
quais temos de promover uma reforma
íntima, com culpa e autoflagelação (o que resulta na maior parte das vezes
em mera hipocrisia), mas começamos a compreender tudo isso como imaturidade
espiritual. Deixar de lado exibicionismos, personalismos, melindres e vaidades
é simplesmente ter atingido um grau de maturidade em que não se acha mais graça
nessas pequenezas. A pessoa mais madura acha sim graça em fazer o bem sem
ostentação, em buscar contribuições que a façam crescer e não as ilusões do
incenso que a façam estacionar…
É claro que tudo isso é o ideal a
ser perseguido. Sabemos que estamos todos em aprendizagem, em processo de
maturação espiritual. Todos nós vamos misturar imperfeições nossas em qualquer
ação, por isso que Kardec dizia que o melhor médium é o que menos erra. Mas não
custa tentar um pouco de bom senso e seguir algumas recomendações dele. E
seguir também o seu próprio exemplo.
Em todo o século XIX, com grandes
gênios de egos inchados – como Compte, Marx, Freud – Kardec é notável por ter
se escondido atrás da própria obra. Ele não encenava humildade, falando de si
mesmo de forma depreciativa, ele simplesmente não falava de si. Buscava
elaborar um conhecimento racional, equilibrado e reto. E foi tão modesto que
seus adeptos chegaram a achar até hoje que ele foi mero codificador (título
aliás que não aparece em nenhuma obra sua), um simples um secretário de ideias
reveladas pelos Espíritos. Mas na verdade, Kardec foi o fundador do
Espiritismo, que é justamente um método de abordagem dos fenômenos mediúnicos.
Como se dá esse processo entre os dois mundos e como podemos analisar e
aproveitar para nossa edificação moral, o que vem de conteúdo nesse diálogo
entre encarnados e desencarnados? Aí reside a essência do Espiritismo. E
exatamente esse seu método de naturalização da mediunidade, com uma abordagem
crítica e racional, que não entendemos e não praticamos no movimento espírita.
É preciso pois, para que possamos restabelecer comunicações seguras, confiáveis e democratizadas com o mundo espiritual, que diminuamos nosso ego, recuperemos o espírito crítico, estudemos Kardec e busquemos a ética de servir desinteressadamente.
20 abril 2025
ESPIRITISMO: opressor ou libertador? Bruno Lins Quintanilha
Bruno Lins Quintanilha, 35 anos, professor de Geografia no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro.
Atua na Casa Espírita Eurípedes Barsanulfo, autor do livro “O que é o Espiritismo? Uma tentativa de resposta para o século XXI” e de diversos artigos publicados regularmente em periódicos em periódicos espíritas. No link a seguir, é possível encontrar toda a produção do autor de forma gratuita: https://linktr.ee/brunoquintanilha
O Espiritismo conforme construído por Allan Kardec é um grande instrumento de esclarecimento, consolo e esperança. Entretanto, cabe apontar que não é uma obra pronta e muito menos perfeita[1]. Assim aliás enxergava o seu próprio construtor:
O Livro dos
Espíritos não é um tratado completo do Espiritismo; não faz senão apresentar as
bases e os pontos fundamentais, que se devem desenvolver sucessivamente pelo
estudo e pela observação.[2]
Em outra obra, e em outro ano, o mesmo princípio é reafirmado:
Pensam muitas pessoas, ademais, que O livro dos
espíritos esgotou a série das questões de moral e de filosofia. É
um erro.[3]
Prossegue em seu último livro:
O Espiritismo,
pois, estabelece como princípio absoluto somente o que se acha evidentemente
demonstrado, ou o que ressalta logicamente da observação. Entendendo-se com
todos os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das suas próprias
descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer
ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas e
abandonado o domínio da utopia, sem o que o Espiritismo se suicidaria. Deixando de ser o que é,
mentiria à sua origem e ao seu fim providencial. Caminhando de par com o
progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas
lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria
nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará.[4]
Se do ponto de vista intelectual, o
Espiritismo kardequiano foi abertura, curiosidade, refazer e pesquisa constantes,
do ponto de vista moral ele é a busca incessante pelo bem-estar humano, seja a
nível individual ou coletivo:
Coloco em primeira linha consolar os que sofrem, levantar a coragem dos abatidos, arrancar um homem de suas paixões, do desespero, do suicídio, detê-lo talvez no abismo do crime.[5]
Por sua poderosa revelação, o Espiritismo ve, pois, apressar a reforma social (6)
[1]
Allan Kardec, em Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Kardec, Discursos
Pronunciados nas Reuniões Gerais dos Espíritas de Lyon e Bordeaux, III parte.
Seu fundador
insistia teimosamente na importância da caridade, ou seja, do amor em
movimento. Amor que pode assumir as mais variadas formas e ações possíveis, mas
todas elas sempre alicerçadas no desejo do bem-estar do outro, no respeito, no
acolhimento, na solidariedade:
Sem a
caridade, não há instituição humana estável; e não pode haver caridade nem
fraternidade possíveis, na verdadeira acepção da palavra, sem a crença.
Aplicai-vos, pois a desenvolver esses sentimentos que, engrandecendo-se,
destruirão o egoísmo que vos mata. Quando a caridade tiver penetrado as massas,
quando se tiver transformado na fé, na religião da maioria, então vossas
instituições se tornarão melhores pela força mesma das coisas; os abusos,
oriundos do personalismo, desaparecerão. Ensinai, pois, a caridade e,
sobretudo, pregai pelo exemplo: é a âncora de salvação da sociedade. Só ela
pode realizar o reino do bem na Terra, que é o reino de Deus; sem ela, o que
quer que façais, só criareis utopias, das quais só vos resultarão decepções.[7]
Resumidamente, o que busco deixar
explícito é o cerne intelectual e moral do Espiritismo na proposta Kardequiana.
É óbvio que enquanto um sistema de
ideias e valores construído por um homem branco, de classe média, na Europa do
século XIX, o Espiritismo kardequiano tem problemas e limitações. A sociedade
daquele tempo-espaço era infinitamente mais limitada do que o é a nossa
atualmente. Incontáveis avanços intelectuais, técnicos, culturais e jurídicos
ocorreram entre as décadas de 1850/1860 e o século XXI. Nenhuma ideia jamais
deve ser descontextualizada de onde e quando surgiu. Tudo precisa ser entendido
dentro de um contexto e, posteriormente, analisado e criticado.
Além do mais, dessacralizar e
humanizar indivíduos e obras é fundamental, pois encarar toda obra como produto
de um ser humano que tem limites e lacunas – mas também talentos e potenciais –
nos permite aproveitar o que há de bom e filtrar o que não seja razoável. É
preciso separar a casca, que tem muito do contexto sociocultural de um determinado
tempo-espaço do fruto, que é ainda válido e extremamente rico de possibilidades
e utilidade.
Em outra
ponta, não podemos esquecer que conforme as ideias são propagadas por
diferentes lugares e pessoas ao longo do tempo, elas irão, inevitavelmente,
sofrer modificações, adaptações, reapropriações. Uma ideia gestada na França de
1850, quando chegar ao Brasil de 1880 irá passar por um filtro sociocultural
que a transformará. E de 1880 até os anos 2000, mais camadas irão se sobrepor. E
não há nada de estranho nisso do ponto de vista sociológico. Isso é, na
realidade, esperado, e ocorre com todas as religiões, doutrinas ou filosofias.
Do ponto de
vista da Antropologia e da Sociologia, podemos afirmar que há cristianismos,
islamismos, judaísmos, espiritismos, ou seja, uma mesma religião ou doutrina
vai desenvolver inúmeras variações internas conforme se difunde, muita embora
vá manter alguns elementos que dão algum tipo de unidade dentro dessa
diversidade que naturalmente se forma.
Apesar dessa
natural pluralidade, é importante ressaltar a importância da coerência entre
religião/doutrina, suas transformações e apropriação por parte dos indivíduos.
Darei um exemplo dentro do cristianismo.
Jesus, no Novo Testamento, é um
indivíduo que ensina e vivencia uma profunda mensagem de amor, solidariedade,
respeito. Acolhia os excluídos e marginalizados, denunciava os religiosos
hipócritas e criticava as tradições que oprimiam. Após a morte de Jesus, seus
discípulos iniciaram um movimento de organização, sistematização e difusão de
seus ensinos. O cristianismo enquanto corrente religiosa nasce a partir disso.
Entretanto, ao longo dos séculos, indivíduos e grupos usaram essa mensagem que
é de amor, simplicidade, espontaneidade, para criar instituições que oprimiram,
violentaram, disputaram poder político e mesmo assassinaram. De um judeu pobre
que fugia da posse de qualquer privilégio, que andou entre pescadores,
prostitutas e doentes, criaram posições de mando, templos cheios de luxo e
inumeráveis regras.
Pastor Henrique Vieira é claro a
respeito dessa questão no movimento cristão:
É
impressionante como o cristianismo, uma espiritualidade de origem periférica e
popular, pautada na radicalidade do amor, foi se tornando justificativa para
sistemas opressores e práticas de ódio. Jesus andou com os pobres e oprimidos,
acolheu as pessoas amaldiçoadas e marginais, impediu processos de execução,
recusou mecanismos de vingança, exaltou o perdão como forma de mediação de
conflitos, reconheceu a dignidade até de seus inimigos. Jesus foi preso,
torturado e assassinado. Foi executado pelo Império Romano sob o aplauso e
escárnio de muitas pessoas. Enfim, foi um preso político, vítima da violência e
do ódio. Como uma mensagem com essa origem pode, em tantos momentos da
história, justificar atos de violência e genocídio? A lente fundamentalista se
apega à letra enquanto esfria corações diante da vida concreta.
Jesus foi
vítima desse modelo que colocava a Tradição (isto é, o conjunto de leis
bíblicas da época) como referência absoluta, inquestionável e impenetrável.”[8]
Por sua vez,
Chico Xavier e o Espírito Neio Lúcio, por meio da mediunidade, também dão outra
possibilidade de perspectiva para a questão:
- Sara, qual é o
serviço fundamental de tua casa?
- É a criação de
cabras – redarguiu a interpelada, curiosa.
- Como procedes
para conservar o leite inalterado e puro no benefício doméstico?
- Senhor, antes
de qualquer providência, é imprescindível lavar, cautelosamente, o vaso em que
ele será depositado. Se qualquer detrito dicar na ânfora, em breve todo o leite
se toca de franco azedume e já não servirá para os serviços mais delicados.
Jesus sorriu e
explanou:
- Assim é a
revelação celeste no coração humano. Se não purificamos o vaso da alma, o
conhecimento, não obstante superior, confunde-se com as sujidades de nosso
íntimo, como que se degenerando, reduzindo a proporção dos bens que poderíamos
recolher.[9]
O trecho acima obviamente está
permeado por uma dimensão literária e até mesmo teológica, mas a reflexão que
propõe é valiosa: o quanto as religiões e doutrinas sofrem de modificação
quando nos atravessam? O quanto nossos interesses pessoais, lacunas e
limitações influenciam nesse processo?
O fato é que a mensagem cristã foi
intensamente mutilada e mesmo completamente distorcida por muitos ao longo do
tempo. Uma coisa são interpretações diferentes acerca de passagens, ensinos,
recomendações, rituais – o que é natural em vista da diversidade humana. Outra
é transformar água em lama, amor em ódio, paz em violência, justiça em
exploração.
Pois bem, o Espiritismo, como todas
as religiões e doutrinas, não escapou às mutilações e distorções. E reforço que
não quero aqui defender uma ideia de pureza original perfeita. Não gosto dessa
ideia. O que advogo é sobre a necessidade de manutenção de coerência entre os
pontos chave de uma religião ou doutrina ao longo do tempo e de sua difusão por
pessoas e espaços.
Voltemos a Kardec. Em O Livro dos
Médiuns ou Guia dos médiuns e evocadores, vemos um autor buscando desmistificar
a mediunidade, explicando-a da forma mais simples e direta possível, com o
objetivo de auxiliar aqueles que têm a faculdade mediúnica a usá-la de forma
proveitosa para o auxílio aos outros ou para a pesquisa espírita. Kardec
naturaliza e humaniza a mediunidade, mas atualmente, em muitas instituições
espíritas, ela é encarada como algo excessivamente engessado, distante e
limitado. O acesso a mediunidade e à prática mediúnica é, em muitas situações,
vetado ou muito dificultado. É como um Espiritismo sem Espíritos.
Em O Livro dos Espíritos, encontramos
um Kardec que se permite filosofar, questionar e dialogar com os Espíritos a
respeito dos mais diversos temas, sem tabus ou medos. Na obra, são debatidas a
escravidão, a pena de morte, os direitos da mulher, o enriquecimento com base
na exploração, a fome e a má distribuição dos alimentos, desigualdades sociais,
liberdade de pensamento e religião, etc. Isso tudo em meados do século XIX, em
meio a França sob um governo de caráter autoritário. Mas no Brasil do século
XXI, discutir racismo, questões de gênero, desigualdades sociais ou outros assuntos
contemporâneos é visto em muitas instituições como erro grave, passível de
marginalização ou mesmo expulsão.
Em Viagem Espírita em 1862 e outras
viagens de Kardec e em O Livro dos Médiuns, observa-se uma perspectiva de grupo
ou instituição espírita como um ambiente de acolhimento, fraternidade,
respeito, vínculos, amor. Mas há muitos centros espíritas em que o indivíduo
não será acolhido, respeitado ou tratado com solidariedade. Se um negro, gay,
com o cabelo pintado de loiro e piercing for o palestrante da noite em um
centro espírita, qual seria a reação do auditório? Quantos indivíduos LGBT+ não
encontram espaço e nem respeito em instituições espíritas? Se um médium resolve
fazer tatuagens que preencham ambos os braços, como será encarado por seu grupo
de reunião?
Para além disso, percebo também
espíritas com alto grau de sofrimento psíquico vivenciado ao longo da vida pela
forma como os ensinaram e apresentaram o Espiritismo. Pessoas com muito medo,
culpa, insegurança, desencorajadas a questionar, estimuladas a sempre obedecer.
Indivíduos, por vezes, verdadeiramente traumatizados. Não é difícil encontrar
relatos de espíritas sobre experiências dolorosas vivenciadas no ambiente
espírita.
O fato é que podemos falar de um tipo
de fundamentalismo espírita que está presente no Brasil. Uma forma de se
apropriar, relacionar e difundir o Espiritismo que pode oprimir, violentar,
silenciar. Uma maneira de olhar arrogante, que enxerga o Espiritismo como algo
superior, hierarquicamente acima de outras religiões ou doutrinas, como um
saber que está além da ciência e da filosofia. Uma perspectiva autoritária, que
não admite ser questionada, criticada e que não se abre para um diálogo franco
e respeitoso com a diversidade e a sociedade.
A mente
fundamentalista não se permite duvidar do que crê e não aceita dialogar com as
diferenças.[10]
para um
fundamentalista não há diálogo. Se um fala em nome de Deus e o outro não, que
conversa é possível?[11]
Mas o grande
ponto do fundamentalismo é que ele produz uma visão que se percebe como verdade
absoluta. A mente fundamentalista tende a entrar em pânico diante de dúvidas e
questionamentos[12]
O fundamentalista
não dialoga, porque não se propõe a ouvir; não aprende, porque parte do
pressuposto de que só pode ensinar. O mundo fica dividido entre salvos e
perdidos, entre bem e mal, e a fronteira delimitada pelo conjunto de crenças da
instituição religiosa.[13]
o mais relevante
é submeter nossa doutrina à reflexão, à comunhão, ao exercício permanente da autocrítica
à luz das demandas e necessidades do nosso tempo.[14]
Espiritualidade
é abertura, fundamentalismo é fechamento. Espiritualidade se move nas
perguntas, fundamentalismo, em certezas irretocáveis. Espiritualidade é
experiência e contemplação, fundamentalismo é doutrina. Espiritualidade se move
no amor e na liberdade, fundamentalismo, na culpa e no medo. Espiritualidade
transita nas diferenças e percebe a diversidade como expressão sagrada,
fundamentalismo vê a diversidade como maldição. Portanto, a experiência
religiosa é saudável quando alimenta a espiritualidade sem sufocá-la.[15]
Há espíritas
que, infelizmente, por não encontrar ambiente saudável para acolhimento, escuta
e amparo, entram em depressão, adoecem.
Pessoas que
perderam algum familiar por meio do suicídio e ainda são violentados por um
terrorismo psicológico cruel que, ao invés de acolher e prestar compaixão e
solidariedade, gera medo e angústia.
Há espíritas
que, frente às enormes desigualdades sociais e a absurda quantidade de pessoas
desabrigadas e dormindo nas calçadas, justificam a si mesmas que está tudo
conforme a justiça divina, tratando-se de um processo de expiação que cumpre
àquele indivíduo passar e não há muito o que pode ser feito.
Há espíritas
que associam todo problema psíquico à obsessão e questões espirituais, quando
há muitos casos em que o tratamento precisa ser com um profissional da
Psiquiatria e com um Psicólogo.
Há jovens que
frequentam evangelização, mocidade e, depois de adultos, não retornam nunca
mais ao centro espírita pois ao ingressar na universidade, em movimentos
sociais ou ter acesso a outros saberes e experiências, identificam que o espaço
da instituição espírita não os comporta mais porque não os aceitará como são e
pensam, não lhes possibilitando mais espaço de atuação frutífera.
CONCLUSÃO
A questão é
que o Espiritismo não foi concebido para ser fechado, dogmático, frio,
autoritário. E se alguns o fizeram assim, ele não precisa ser assim. Há formas
acolhedoras, dialógicas, críticas, humanistas de se apropriar e relacionar com
o Espiritismo. Ele não precisa ser opressão, medo ou culpa, na verdade pode ser
libertação, impulso, leveza, suporte para nosso crescimento individual e mesmo
social.
O Espiritismo
tem, como principal contribuição intelectual, apresentar uma lente para
observação e análise da realidade. Um óculo composto pelas ideias de Espírito,
mediunidade, Deus, reencarnação e evolução. Olhar para a vida levando em conta
esses conceitos altera muitas conclusões, ações e mentalidades.
Do ponto de vista
moral, sua principal contribuição é o consolo e a esperança. Ao apontar e
demonstrar empiricamente que há um princípio de vida em nós que sobrevive à
morte do corpo físico, evidenciando que a vida não cessa, muitos de nós
adquirimos força para nos erguer e lutar perante as adversidades. Saber que
nossos amores continuam vivos ressuscita pessoas em vida. Conceber que a vida
material é extremamente importante e valiosa, mas que é apenas uma etapa da
nossa jornada, é como expandir horizontes.
Do ponto de vista
social, ele pode estimular nossa sensibilidade e compaixão, transformando-as em
reflexão e ação concretas para alterar o status quo, seja em escala micro,
média ou macro. Ao nos evidenciar o valor da vida e da encarnação, pode incutir
um senso de urgência para as mudanças que precisam ocorrer na coletividade para
que o nível de bem-estar coletivo seja cada vez maior, evitando sofrimentos
evitáveis. Ao apresentar as consequências espirituais de nossas ações, pode
despertar para um nível maior de responsabilidade e consciência perante os
outros.
Por fim, do
ponto de vista institucional, o movimento espírita não precisa ser algo
homogêneo e pasteurizado. Ele pode e não tem como deixar de ser diverso,
plural. A casa espírita precisa ser um grande espaço de sociabilidade, de
encontros, convivência. Atualmente, vejo nitidamente que a maior contribuição
que a casa espírita me proporcionou foi a convivência/sociabilidade. Conhecer
pessoas diferentes, com histórias diversas. Construir vínculos. Vivenciar
experiências por meio do trabalho voluntário. As conversas após as reuniões até
depois da meia noite na rua. Vidas encontrando outras vidas. Atravessar e ser
atravessado por outras trajetórias. Não podemos abrir mão dessa dimensão da
casa espírita como espaço de encontros - para muito além de doutrina ou estudo
somente. O próprio nome já diz: “casa espírita”. Antes de ser
"espírita", tem que ser "casa".
Por um
Espiritismo que seja liberdade e libertação, tanto na dimensão espiritual,
quanto na individual e na social. Por um Espiritismo que seja estimulador da
espiritualidade. Por um Espiritismo que alimente a espontaneidade, a
autenticidade e a humanidade. Por um Espiritismo que possa ser meio, ferramenta
de crescimento para aqueles que o conheçam. Por um Espiritismo leve, risonho e
alegre.
REFERÊNCIAS
KARDEC,
Allan. A Gênese [tradução de Guillon Ribeiro da 5a ed. francesa]. 53. ed. 1.
imp. Brasília: FEB, 2013.
KARDEC,
Allan. O Livro dos Espíritos: princípios da Doutrina Espírita [tradução de
Guillon Ribeiro]. 92. ed. 2. Reimp. Rio de Janeiro: FEB, 2012.
KARDEC,
Allan. O Livro dos Médiuns, ou, guia dos médiuns e dos evocadores: Espiritismo
experimental [tradução de Guillon Ribeiro a partir da 49a edição francesa de
1861]. 81. ed. 1. imp. (Edição Histórica). Brasília: FEB, 2013.
KARDEC,
Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos 1866 [tradução de
Evandro Noleto Bezerra]. Brasília: Federação Espírita Brasileira.
KARDEC,
Allan. Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Allan Kardec [tradução de
Evandro Noleto Bezerra]. 1. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005.
XAVIER,
Francisco Cândido. Jesus no Lar. 37. ed. 8. imp. Brasília: FEB, 2014.
VIEIRA,
Henrique. O Amor como Revolução. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.
[1]
A abordagem que Kardec fez da questão racial – presente na Revista Espírita de
Abril de 1862 –, a questão 822 a) de O Livro dos Espíritos ou vários trechos do
livro A Gênese contém ideias e teorias que a ciência e o tempo provaram
extremamente equivocados. Ou seja, a obra kardequiana não é algo divino que
desceu puro dos céus. É, antes, a obra de um ser encarnado, com a participação
de muitos outros encarnados e desencarnados, todos esses em processo de
evolução e sob a influência de um tempo, espaço, cultura e sociedade.
[2]
Allan Kardec, na Revista Espírita de Julho de 1866, na página 299.
[3]
Allan Kardec, em O Livro dos Médiuns, item 343.
[4]
Allan Kardec, em A Gênese, item 55.
[5]
Allan Kardec, em Viagem Espírita em
1862 e outras viagens de Kardec, Discursos Pronunciados nas Reuniões Gerais dos
Espíritas de Lyon e Bordeaux, item 1.
[6]
Allan Kardec, em Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Kardec, Discursos
Pronunciados nas Reuniões Gerais dos Espíritas de Lyon e Bordeaux, III parte.
[7]
Allan Kardec, em Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Kardec, Discursos
Pronunciados nas Reuniões Gerais dos Espíritas de Lyon e Bordeaux, III parte.
[8]
Henrique Vieira, em O Amor como Revolução, p. 62.
[9]
Neio Lucio, pela mediunidade de Chico Xavier, no livro Jesus no Lar, capítulo
3.
[10]
Henrique Vieira, em O Amor Como Revolução, página 57.
[11]
Henrique Vieira, em O Amor Como Revolução, página 59.
[12]
Henrique Vieira, em O Amor Como Revolução, página 63.
[13]
Henrique Vieira, em O Amor Como Revolução, página 58.
[14]
Henrique Vieira, em O Amor Como Revolução, página 59.
[15]
Henrique Vieira, em O Amor Como Revolução, página 65.
05 abril 2025
Fato Espírita - Inteligência e Simplicidade - Eugenio Lara
Fato
Espírita - Inteligência e Simplicidade
Eugenio Lara, (23/7/1962 - 6/6/2024). Arquiteto e designer
gráfico, membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita,
editor-fundador do site PENSE – Pensamento Social Espírita.
Há pessoas que são espíritas sem
que tenham consciência disso. Pensam, sentem e vivenciam ideias e valores que
muitos militantes espíritas “velhos de guerra” nem imaginam como fazê-lo,
mergulhados que estão em seu próprio egoísmo. Normalmente, esse fenômeno
acontece e mostra-se com mais evidência em pessoas que não tiveram, na atual
existência, a oportunidade de se instruir, de aprimorar a inteligência através
do estudo.
No processo evolutivo, o homem
humilde, mas de bom coração, que não teve acesso ao estudo nessa vida, pode
estar bem mais perto da perfeição relativa do que o sujeito extremamente
intelectualizado, com um quociente de inteligência (Q.I.) altíssimo, mas que se
mostra insensível e fechado em si mesmo, quando se trata de abrir seu coração
para o outro.
Realmente, o Espiritismo é bem
esclarecedor nesse aspecto. Afirmam os espíritos que “o homem simples, mas
sincero, está mais adiantado no caminho de Deus do que aquele que aparenta o
que não é.” (Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, q. 828-a). A
arrogância, o despeito e a vaidade tomam conta de suas atitudes, de seu
comportamento que, visto sob o ponto de vista moral, mostra-se ridículo e
patético. É o que Deolindo Amorim (1906-1984) chama de falsa cultura: “é
exibicionista, mas a verdadeira cultura é temperada pela humildade, sem
exagero, sem atitudes impressionantes.” (Evangelho e Cultura, em Ideias
e Reminiscências Espíritas).
Todas as pompas e trejeitos
sofisticados não fazem do homem culto e intelectualizado um verdadeiro homem de
bem. Isso não significa, contudo, que devido a esse fato, tenhamos de valorizar
a ignorância em detrimento do desenvolvimento intelectual. Como diz Deolindo
Amorim no mesmo artigo citado: “ao invés de provocar o orgulho ou a empáfia,
como tantas e tantas vezes se diz, a verdadeira cultura cria condições íntimas
para a humildade, mas a humildade raciocinada e não a humildade convencional,
que encobre a presunção recalcada”.
O Espiritismo nos ensina que o
progresso intelectual é incessante, permanente e antecede ao progresso moral. É
que o desenvolvimento da inteligência, da razão, abre portas para o
desenvolvimento moral. Através do livre-arbítrio o ser humano delibera,
exercita seu intelecto e cria situações, dilemas, promove conflitos que exigem
decisões, definindo assim caminhos e escolhas morais.
Sem inteligência não há razão. E
sem raciocínio não há livre-arbítrio. Não dá para pensar em ética, moral e
valores sem a existência do livre-arbítrio. Não há o bem, nem o mal. Haveria
apenas um ser que age sem consciência moral, ou o que é pior, age imaginando
que está agindo com consciência, mas que, na prática, age como um animal, ainda
mergulhado no estado natural.
Na verdade, os maiores obstáculos
ao pleno desenvolvimento intelecto-moral são o egoísmo e a vaidade. Enquanto o
sujeito permanecer bem no alto do pedestal de sua arrogância, não perceberá o
quanto ainda tem que aprender. A sensação de superioridade intelectual ofusca a
necessidade interna de progresso. É o sabe-tudo, o metido a sabichão, que não
percebe o quanto ainda terá de caminhar para ser considerado um homem sábio.
A propósito, o exemplo do grande
filósofo grego Sócrates (469 a.C. - 399 acc.) vem bem a calhar. Quando seu
amigo Querefonte disse-lhe que para o Oráculo de Delfos, ele era o homem mais
sábio de Atenas, mostrou-se surpreso: “Como posso ser o homem mais sábio de
Atenas quando sei tão pouco?” Ao invés de se sentir o “special man”, o “number
one” e tirar proveito disso, apenas dizia: “só sei que nada sei”. Essa atitude
de humildade, oriunda do autoconhecimento, levou o grande filósofo a um
permanente questionamento, à incessante busca da verdade, a se colocar sempre à
disposição para debater suas ideias.
Deolindo Amorim tem, portanto,
toda a razão quando afirma que “quanto mais culta é a criatura humana, mais
humilde ela se torna, porque sabe, e não é mais necessário que alguém lhe diga,
que o legítimo conhecimento só tem proveito para o espírito quando não se deixa
influenciar pela vaidade, pela arrogância, pelo egoísmo”.
Artigo publicado em setembro/2013 no Jornal Abertura, do ICKS-Instituto
Cultural Kardecista de Santos.