MUJICA E O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA
UMA ANÁLISE ESPÍRITA, NÃO MORALISTA.
Em 13 de maio de 2025 faleceu José
Alberto Mujica Cordano, mais conhecido
como Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai. Pensamos que para nós, espíritas,
compreendermos um personagem com a história de Pepe Mujica, é necessário
amplitude de pensamento, requer sairmos do senso comum, dos jargões simplistas
e condenatórios, tão próprios da extrema direita de nosso tempo, a qual
normalmente julga pela superfície das coisas, de forma moralista, sem ir à
profundidade dos problemas, sem ir ao campo das intenções e, também, das
estruturas sociais.
Pepe Mujica foi um político, não foi
um religioso ou espiritualista de qualquer denominação. Esse dado é fundamental
para que possamos começar a tentar entender seus valores e ações nesse mundo.
Mesmo conhecedores da polêmica sobre a filiação ideológica de Mujica que
analisa se ele era reformador ou revolucionário, podemos dizer que o que
influenciou Mujica, em termos de concepção filosófica de mundo, além de um
ideário nacionalista, foi uma visão materialista de cunho marxista.
Na compreensão marxista, esse mundo
que vivemos, traz uma violência de classes intrínseca, pois o sistema
capitalista é altamente violento e excludente de grandes parcelas da população
no sentido do acesso aos bens da vida, seja o trabalho, a educação, a saúde, a
alimentação, a moradia, o saneamento básico etc.
Há, no mundo, segundo a vertente
filosófica marxista, enormes contingentes de seres humanos, em geral
trabalhadores, não detentores dos meios de produção, possuidores apenas da sua
força de trabalho, que se encontram desamparados, jogados à sorte, em razão de
um sistema econômico que se diz democrático, mas que desampara milhões de pessoas.
O marxismo nos fala de uma violência
“estrutural” do sistema econômico capitalista, que vai além da violência
meramente individual, essa violência estrutural tem a ver com a forma econômica
e política em que a sociedade está organizada.
Podemos ver aspectos dessa violência
em vários campos de nossas sociedades capitalistas contemporâneas. É facílimo
verificar, por exemplo, que a esmagadora maioria de presos do sistema prisional
brasileiro, por exemplo, são jovens das comunidades carentes do Brasil, em
grande parte negros, que são facilmente aliciados pelo tráfico de drogas, ante
a falta de oportunidades para as suas vidas nas comunidades desamparadas em que
vivem, nas quais, via de regra, o Estado não está presente.
Esses jovens poderiam estar aspirando
à universidade para serem médicos, engenheiros, advogados, poderiam sonhar em
ser músicos, dançarinos, atores e atrizes, poderiam desenvolver suas vocações
como mecânicos, eletricistas, padeiros, encanadores, entre tantas
possibilidades profissionais, no entanto, desde a juventude, às vezes, desde a
adolescência, possuem seu destino marcado por uma ficha criminal e por
passagens por estabelecimentos penitenciários ou educacionais para menores
infratores. Trata-se de um desperdício brutal de seres humanos jovens, com
potencialidades para servir à sociedade.
Se não levarmos em consideração esses
dados da realidade, seremos levados a pensar que o problema desses jovens é
exclusivamente moral, o que seria um erro, pois o problema desses jovens passa
pela análise econômica-política-social.
O marxismo, dentro desse contexto,
aceita a violência revolucionária para que se possa livrar o mundo dessas
mazelas, no sentido de fazer um mundo melhor que livre o ser humano da
violência estrutural das sociedades capitalistas e que vá na direção da
emancipação humana. Podemos concordar ou discordar dessa teoria, mas não
podemos perder de vista que se trata de uma teoria filosófica, que até mesmo se
pretende científica no campo das ciências sociais, sendo que, gostemos ou não,
procura dar conta da realidade. Essa visão de mundo influenciou profundamente o
jovem Mujica.
Do ponto de vista político e histórico é necessário levar em conta,
igualmente, que na década de 60 do século passado, havia uma euforia na América
Latina com as ações armadas. O exemplo cubano causou imensa esperança em toda a
América Latina à época, inclusive, no povo cubano, que apoiou aquela revolução,
que foi realizada contra um ditador apoiado pelos norte-americanos, de nome
Batista.
É nesse contexto que devemos falar
das ações revolucionárias de Mujica. De fato, Mujica participou de um grupo
guerrilheiro que lutou, com armas na mão, contra aqueles que entendia, à época,
como mantenedores da violência estrutural na sociedade uruguaia.
Há quem critique Mujica por ter
participado de um grupo guerrilheiro em época democrática. Pode ser que a
avaliação de Mujica e seus companheiros revolucionários tenha sido equivocada
nesse sentido. A própria esquerda debate sobre o tema do momento certo para
ações de tipo armado, há correntes de pensamento na esquerda que entendem que a
luta armada só se justificaria frente a ditaduras.
Sobre esse tema podemos ver a opinião
de Mujica, na reportagem do portal uol de 13.05.2025: “Parte da população
uruguaia culpa os tupamaros pela espiral de violência que levou ao golpe
militar de 1973. Para Mujica, no entanto, seu país vivia uma “democracia
doente” e a ditadura era inevitável, assim como ocorreu em outros países da
região”.
De fato, em 1973, o Uruguai se torna
uma ditadura, conforme o espírito do tempo de golpes militares na América
Latina. O grupo revolucionário de Mujica se manteve ativo, por alguns anos,
após o advento da ditadura uruguaia lutando contra essa ditadura e pagando o
preço por isso. Mujica, por suas ações, foi preso.
Existe um filme muito interessante de
nome “Uma noite de 12 anos” que retrata as condições degradantes da prisão de
Mujica. Segundo o historiador Dércio
Fernando Moraes Ferrari, em reportagem
para o portal uol, em 13.05.25:
“Mujica foi preso em absoluto
vazio jurídico, já que não foi julgado e nem acusado, sua prisão extrajudicial
poderia ser considerada, para todos os efeitos, um sequestro militar”.
Por fim, Mujica sai da prisão em
1985.Nessa ocasião renúncia aos seus ideais de luta armada e se empenha no
processo de redemocratização do Uruguai. Após ter passado pelos cargos de
deputado, senador e ministro de Estado chegou à presidência do Uruguai em 2009.
Exerceu a presidência da República
com espírito humanista e democrático. Jamais se pôs a querer vingar-se das
humilhações sofridas no cárcere e jamais cortejou qualquer possibilidade de
implantar uma ditadura de esquerda no Uruguai. Pouco antes de morrer ajudou a
eleger um correligionário seu à presidência da República.
Como espírita, não sou favorável a
métodos violentos de transformação social, pois acredito que a violência traz
traumas profundos, difíceis de curar, nos indivíduos e nas sociedades, mas
compreendo o contexto político, histórico e filosófico do qual partiu Mujica
para suas ações. Também não confundo a violência do opressor com a violência do
oprimido.
É necessário, nesse ponto, considerarmos, com
realismo, o processo histórico, o qual nos demonstra, que, muitas vezes,
processos de transformação social ocorrem através de lutas sociais violentas.
Para ficar apenas em alguns exemplos, a Revolução Francesa contra a
aristocracia monárquica, as guerras de independência nacional de muitos povos,
inclusive da América latina, e a guerra civil norte americana com vistas a
abolição da escravatura, entre outros movimentos, demonstram a triste realidade
da violência na história que ainda não foi superada pelos povos, mas que,
apesar de tudo, serviram a movimentos libertadores de povos e grupos sociais
oprimidos.
Na verdade, a violência revolucionária não
nasce do vácuo, do vazio, nasce de outras violências institucionalizadas
geralmente não categorizadas como violência. Nesse sentido, Ghandi e Martin
Luther King tentaram abrir novos e excelentes caminhos de emancipação política
não violenta, mas, paradoxalmente, foram mortos violentamente, apesar de seu
pacifismo. Trata-se de tema extremamente complexo e que foge muitas vezes ao
nosso desejo pessoal, legítimo e ético, e espírita, de paz entre as pessoas e
os povos.
A violência, no caso de Mujica,
visava a um fim maior, conforme as crenças e convicções filosóficas e políticas
do seu grupo, tinha por objetivo a emancipação de seu povo rumo a um estágio
superior de qualidade de vida e democracia para todos os uruguaios. Mesmo que
não concordemos com ações violentas não podemos esquecer desse dado fundamental
de análise. Não se trata de justificar, mas de compreender as lições da
história.
O espiritismo, por sua vez, possui
toda uma reflexão ética esclarecedora sobre o problema das intenções, das
motivações interiores e responsabilidades. Nesse sentido, Mujica arriscou sua
vida por ideais coletivos e não por motivos
de caráter pessoal, egoísticos.
Uma das características mais nobres de Mujica era seu desprendimento em
relação aos bens materiais. Mujica, seu fusca e seu sítio, ficarão gravados
para sempre na memória de todos aqueles que entendem que a política deve ser
feita sem apego aos bens materiais e às benesses do poder.
O exemplo de Mujica se parece, em
certa medida, com a história de Nelson Mandela. Mandela, em sua juventude,
optou pela luta armada, porém após sair da longa prisão que lhe foi imposta
pelo regime segregacionista da África do Sul chegou à presidência da República
com espírito de tolerância e inclusão de todos os sul Africanos, brancos e
negros, em uma mesma sociedade.
Encerramos o presente artigo com uma
reflexão de Mujica sobre o ódio, o amor, e os defeitos humanos, colhida no portal
uol de 13.05.25: “Tenho meu quinhão de defeitos. Sou apaixonado. Mas há
décadas não cultivo o ódio em meu jardim. Aprendi uma dura lição que a vida me
ensinou: o ódio acaba estupidificando por que nos faz perder a objetividade
frente às coisas. O ódio é cego, como o amor, mas o amor é criativo, e o ódio
destrói-nos”.